Violência custa ao Brasil R$ 92 bilhões por ano
09/01/2009
Parte da região central do Rio de Janeiro parou na última terça-feira por causa de uma guerra entre quadrilhas de traficantes. Durante dez horas, os bandidos trocaram tiros. Um cemitério interrompeu os velórios e os sepultamentos por receio de que parentes de mortos pudessem ser atingidos por balas perdidas. Treze pessoas morreram e oito ficaram feridas. O epicentro do confronto foi o Morro da Mineira, localizado a menos de cinco minutos do Palácio das Laranjeiras, sede do governo do Estado. A polícia voltou a exibir sua inépcia. Chegou ao local do confronto com duas horas e meia de atraso. No dia seguinte, um dos líderes de uma facção do tráfico, preso em flagrante, foi liberado pela polícia em circunstâncias ainda não esclarecidas.
Enquanto o pânico se espalhava no centro do Rio, 25 contraventores, advogados e juízes eram interrogados na sede da Superintendência da Polícia Federal, em Brasília. São integrantes de uma máfia que operava ilegalmente máquinas caça-níqueis, comprava decisões no Poder Judiciário, lavava dinheiro e traficava influência (leia a reportagem sobre a Operação Hurricane nesta edição). A guerra nas favelas cariocas e a infiltração do crime organizado na Justiça são aspectos diferentes do mesmo problema: a assustadora banalidade da violência na sociedade brasileira. O dinheiro da corrupção financia o crime, arma quadrilhas e sustenta o tráfico, que mata nas ruas. Enfraquece também as instituições que deveriam garantir segurança ao cidadão e punição aos culpados.
Isso tem um custo enorme para o país, em perdas de vidas, gastos com tratamento de saúde de vítimas de violência, despesas com segurança, desestímulos à atividade econômica. O tamanho desse custo permanecia uma variável desconhecida, por falta de pesquisas de abrangência nacional. Apenas estudos sobre o custo da violência em três grandes cidades brasileiras – São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte – haviam sido feitos até agora. Essa lacuna acaba de ser preenchida. Pela primeira vez, graças a um trabalho de dois anos do Grupo de Estudos da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), um órgão do governo federal, o custo da violência no Brasil pôde ser calculado com método e rigor científico. Resultado: o crime custa cerca de 5% do Produto Interno Bruto (PIB), o conjunto de todas as riquezas produzidas pelo país em um ano. Em 2004, ano-base do estudo do Ipea, isso representou R$ 92,2 bilhões.
Essa conta equivale à soma dos recursos gastos com segurança pública e privada, despesas hospitalares (internações e atendimento ambulatorial), roubos e perdas de vidas. Esse número foi obtido depois de uma exaustiva compilação e cruzamento de dados de registros policiais, pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), Ministério da Saúde, entre outras fontes. A cifra de R$ 92 bilhões representa o quádruplo dos gastos do governo federal em educação neste ano – R$ 27,6 bilhões é a previsão orçamentária do Ministério da Educação, segundo o site Contas Abertas. A conta pode ser considerada conservadora. Por falta de dados confiáveis, o estudo do Ipea excluiu fatores que poderiam elevar ainda mais o preço da violência, como custo judicial, perdas imobiliárias e gastos com investigações.
O estudo fez contas também para tentar medir o tamanho de setores da “economia do crime”, uma equação complexa, pois boa parte dela está submersa na informalidade. A indústria da segurança privada, em 2004, movimentou no país R$ 14,4 bilhões, receita comparável à de uma montadora de automóveis, como a GM, ou o dobro do faturamento das maiores empresas da área de alimentos, como a Sadia. Esse número pôde ser calculado graças às informações da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (Pnad), do IBGE, sobre remuneração declarada das pessoas que trabalhavam como vigias e guarda-costas. A “indústria do assalto” é outro ramo próspero, diz o estudo do Ipea. As estimativas sugerem que, entre roubos e furtos, um patrimônio de R$ 8,4 bilhões mudou de mãos no país em 2004. Os próprios autores do estudo tratam o número com cautela, por causa dos poucos dados disponíveis sobre o assunto.
Calcular o preço da violência é uma tarefa complexa, porque há alguns danos intangíveis, cujas conseqüências só as vítimas podem sentir. A dor de perder alguém é o exemplo mais evidente. Mas o estudo traz uma estimativa sobre as perdas de capital humano sofridas pelo setor privado, provocadas pelas mortes de pessoas que foram vítimas da violência: R$ 23,8 bilhões. Trata-se de uma projeção da renda potencial que deixou de ser produzida pela sociedade por causa da interrupção precoce de vidas. “O custo social da violência é um indicador da redução de bem-estar da sociedade”, diz o economista Daniel Cerqueira, do Ipea, um dos autores do estudo.
Qual é a finalidade de um estudo como esse? Ele é o terceiro de uma série sobre violência, financiada pelo Ministério da Saúde e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O trabalho pretende orientar os gestores de políticas públicas. Com seu aprofundamento, será possível saber, de antemão, se um programa voltado para jovens infratores numa favela é mais eficiente que uma ação de policiamento na mesma comunidade e tomar decisões não mais com base na improvisação. É assim que funcionam as políticas públicas nos países mais desenvolvidos, onde zelar pela aplicação do dinheiro público não significa apenas atender à lei, mas à regra de eficiência máxima na gestão dos recursos – a mesma que pauta a iniciativa privada.
Além da explosão da criminalidade, um dos problemas mais graves da segurança pública no Brasil é a má aplicação do dinheiro destinado ao setor. Entre 1995 e 2005, o conjunto dos investimentos públicos em segurança pública aumentou de R$ 20 bilhões para R$ 28 bilhões. Desde os anos 90, os gastos com segurança pública de Estados e municípios, respectivamente, têm aumentado a uma taxa anual de 4,4% e 5,7%. Ainda assim, entre 1980 e 2004, o número de assassinatos cresceu 5,6% ao ano. Mesmo com a leve queda nas taxas de homicídios, verificada recentemente, o Brasil está entre os países mais violentos do planeta (leia o gráfico). O ritmo de redução tem sido inferior ao registrado em países tradicionalmente mais violentos, como a Colômbia. “As autoridades só falam em aumentar efetivos ou viaturas, mas esse caminho segue para a exaustão”, diz Alexandre Carvalho, do Ipea, outro autor do estudo. “Jogar dinheiro para sufocar a violência não está adiantando. É preciso sentar e entender o que fazer.”
O ex-secretário nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva Filho, coronel aposentado da PM de São Paulo, cita um exemplo de que não é só dinheiro que falta para o combate da violência no Brasil. “O Distrito Federal tem a polícia mais bem paga do país e um dos maiores efetivos, com um policial para cada 100 mil habitantes. Mesmo assim, a taxa de homicídios está entre as mais altas do Brasil”, diz José Vicente. “O problema no Brasil não é a quantidade de investimento, mas o que é feito com ele.” Segundo José Vicente, há “uma receita básica de polícia”. Para ele, “não dá para ficar inventando muito, colocando um distrito policial para cada 50 mil habitantes. Seria um desperdício de dinheiro em qualquer lugar”. Mas seria possível, segundo ele, melhorar a resposta da polícia ao crescimento da violência com o uso de estratégia e inteligência, com o melhor treinamento de policiais e a gestão mais eficaz dos recursos. Recém-chegado de uma visita à Academia de Polícia de Nova York, Vicente diz que a caixa de munição, com 50 balas, vendida por US$ 20 nos Estados Unidos, aqui não sai por menos de US$ 100. “Só temos um fornecedor. Nosso treinamento é mais caro.”
O combate ao desperdício na área de segurança pública poderia ser mais eficiente se houvesse mais avaliações sobre as ações anticrime, afirma Nancy Cardia, coordenadora-adjunta do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP). “Os erros só se repetem. Continuamos sem instrumentos para monitorar o desempenho”, afirma a pesquisadora. “Reforçam a força policial, constroem mais presídios, e daí? Parece que não saímos do método da experimentação, na base da tentativa e erro.”
Nos países mais ricos, a cultura de permanente monitoramento e avaliação está consolidada. Um exemplo vem dos Estados Unidos. Em 1996, o Congresso americano contratou um dos maiores especialistas mundiais em criminalidade e violência, Lawrence Sherman, para investigar se centenas de programas anticrime que recebiam US$ 3 bilhões por ano do Departamento de Justiça cumpriam seus objetivos. Sherman descobriu que os programas que incluíam visitas, terapia familiar, treinamento profissional para adultos eram mais eficazes. Segundo Sherman, “governos, como a química, têm de ter uma ciência experimental como base”. Em 2001, a cidade de Nova York contratou dois economistas para avaliar a relação custo-benefício de 27 projetos na área de segurança – de programas de atendimento a adultos infratores a intervenções sociais em comunidades pobres. Eles descobriram que o maior retorno por dólar investido vinha dos programas voltados para o jovem infrator.
Aprenderá o Brasil um dia a lição de Sherman? Entenderemos como relacionar governo e ciência? O ideal é que o país avançasse a ponto de discutir quanto custa um seqüestro, um estupro ou uma agressão a turista. A pesquisadora Nancy Cardia, especializada em psicologia social, é reticente. Ela acredita que as poucas pesquisas disponíveis continuarão a ser ignoradas na formulação das políticas sociais ou de segurança, enquanto o critério do loteamento partidário continuar a dirigir a nomeação dos ocupantes dos principais cargos públicos. Ela faz uma pergunta: “Quem garante que as pessoas nomeadas tomarão as melhores decisões para a nação?”.
Ao tomar posse para seu segundo mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que o problema da violência seria combatido com a “mão forte do Estado”. Certamente, muita força será necessária para enfrentar a crise da segurança pública. Mas as experiências de mais sucesso ensinam que, para alcançar os resultados na área de segurança, é preciso usar a força do Estado, com criatividade, inteligência, racionalidade e boa gestão dos recursos. O estudo do Ipea traz informações novas para que isso possa ser feito. O importante é que ele agora seja aprofundado e usado pelo poder público.
Fonte:
EPTV.com