Pouso forçado dos EUA pode levar à recessão
09/01/2009
Para economista da Universidade de Nova York, dólar deve ter forte desvalorização até 2006
O economista Nouriel Roubini vê com pessimismo o crescente déficit externo dos Estados Unidos. Professor da Universidade de Nova York, ele acredita que um ajuste brusco pode ocorrer neste ano ou no próximo, uma correção que seria marcada por uma forte desvalorização do dólar, aumento significativo das taxas de juros de longo prazo e eventualmente uma recessão. Para Roubini, uma resolução sem sobressaltos dos desequilíbrios da economia americana exigiria uma ação coordenada dos EUA e dos países asiáticos. O governo americano teria de mudar a política fiscal, atacando o déficit das contas públicas, e os asiáticos teriam de permitir a valorização de suas moedas, além de contar mais com o crescimento da demanda do que das exportações para sustentar a expansão da economia.
Como nada disso parece provável, Roubini avalia que vai ter vida curta o arranjo pelo qual os estrangeiros, em sua maior parte bancos centrais dos asiáticos, financiam o gigantesco déficit em conta corrente americano, atualmente na casa de US$ 660 bilhões ao ano. Em recente artigo escrito juntamente com Brad Setser, da Universidade de Oxford, Roubini destaca que, com os atuais níveis de juros, os ativos em dólar não compensam integralmente os investidores do risco de uma futura depreciação da moeda americana. “Em conseqüência, financiar os EUA é mais um peso que uma oportunidade.” Com isso, ele acha que em algum momento o mundo vai se cansar de financiar esse déficit nas atuais condições de juros e de câmbio.
Roubini é pesquisador associado do Comitê Nacional de Pesquisa Econômica (NBER, na sigla em inglês). Entre 2000 e 2001, foi consultor do Tesouro americano e, entre 1988 e 2003, economista visitante do Fundo Monetário Internacional (FMI). Em parceria com Setser, escreveu em 2004 um livro sobre crises financeiras em países emergentes, elogiado por analistas como Jeffrey Sachs, da Universidade de Columbia, Lawrence Summers, ex-secretário do Tesouro americano, e Kenneth Rogoff, ex-economista-chefe do FMI.
Roubini também é um observador atento do que se passa com países emergentes como o Brasil. Ele elogia a condução da política econômica por aqui, insistindo na importância de o país continuar no atual esforço para reduzir vulnerabilidades externas e fiscais. Faz reparos, porém, à política monetária. Diz que o Banco Central deve ter cuidado para não perder o controle das expectativas de inflação do mercado, mas acha que os juros reais estão muito altos. O BC poderia ser um pouco mais flexível com a meta inflacionária, afirma Roubini, o que poderia abrir espaço para mais crescimento.
Filho de judeus iranianos, nascido na Turquia e criado na Itália, Roubini, cidadão americano, está nos EUA desde o começo dos anos 80. “Eu sou um verdadeiro economista internacional”, brinca ele. A seguir, os principais trechos da entrevista de Roubini ao Valor.
Valor: O sr. defende a idéia de que o ajuste do desequilíbrio externo dos EUA não pode ocorrer suavemente sem um grau de coordenação tácita entre o país e as principais economias asiáticas. O sr. acredita que isso vai ocorrer?
Roubini: Não, eu não acredito que haverá coordenação tácita ou explícita. Eu não acho que a atual administração americana vá mudar a política fiscal, e os países do Leste Asiático não devem ajustar suas taxas de câmbio no momento. A não ser que os Estados Unidos façam sua parte, eles não têm incentivo para ajustar o câmbio, e também não seria efetivo para corrigir o desequilíbrio global. Esses países devem manter seus regimes de câmbio no momento, ainda que isso possa causar problemas no futuro, porque é necessário continuar acumulando reservas, e no fim eles terão que apreciar suas moedas. Quando isso ocorrer, haverá perdas severas em suas reservas em dólar.
Valor: Qual é o desfecho mais provável?
Roubini: O meu cenário de pouso forçado é que o dólar desvaloriza fortemente, o que atinge os ativos denominados em dólar, as taxas de juros americanas de longo prazo sobem com força, os preços de outros ativos como ações, residências e títulos de mercados emergentes caem. Há uma desaceleração nos EUA e potencialmente uma recessão nos EUA e na economia global.
Valor: Quando isso pode ocorrer?
Roubini: Eu temo que isso possa ocorrer entre este ano e o ano que vem. O fator crucial é quando o resto do mundo vai começar a cansar de financiar os EUA. Alguns países que não a China já começam a diversificar suas reservas. A China também vai ter de mudar em algum ponto, ou vai ter de arcar com o maior parte do ajuste. Há quem acredite que esse “Bretton Woods 2” pode durar 10 a 20 anos. Se você falar com Michael Mussa (ex-economista-chefe do FMI), ele vai dizer que pode durar quatro anos. A minha visão é que vai entrar em colapso entre este ano e o ano que vem. Acho a situação muito vulnerável e o colapso deve ocorrer mais cedo do que tarde.
Valor: Os indicadores de solvência externa dos EUA, como a relação entre dívida e exportações, estão longe de serem confortáveis, sendo similares aos de alguns países emergentes. A capacidade de os EUA se endividarem a custo baixo e na sua moeda está em risco?
Roubini: Não acho que a capacidade de os EUA conseguirem se endividar na própria moeda esteja em risco, mas o que pode ocorrer é que os investidores não queiram ter perdas por manter ativos em dólar. Isso é uma outra forma de dizer que os investidores não vão querer manter ativos cujos preços deverão cair com força, o que pode ocorrer, se o dólar se desvalorizar. É possível que eles tentem sair dos ativos em dólar e comprar ativos em outras moedas. Isso pode ser o gatilho para este cenário de pouso acidentado do dólar, do mercado de títulos americanos e ativos mais arriscados, até atingir a economia real.
Valor: O “Financial Times” mostrou recentemente que os bancos centrais estão mudando suas reservas do dólar para euros. O sr. acha que nós veremos novas rodadas de desvalorização do dólar em relação ao euro no curto prazo?
Roubini: Acho que haverá pressão contra o euro e o iene e outras moedas. Por motivos técnicos, o dólar se fortaleceu um pouco nas últimas semanas. A questão é saber a que nível de juros e a que taxa de câmbio os investidores vão querer continuar a financiar os déficits crescentes dos EUA. Para financiar, acho que os investidores vão exigir taxas de juros muito mais altas e uma taxa de câmbio mais desvalorizada.
O mundo financia o déficit fiscal dos EUA e 90% vem dos bancos centrais estrangeiros. E a política fiscal será mantida”
Valor: Quanto tempo os bancos centrais asiáticos vão acumular reservas em dólares para continuar a financiar os EUA?
Roubini: Acho que já há alguns sinais de que alguns países na periferia deste novo Bretton Woods percebem que eles podem tentar sair de ativos em dólar e ir para ativos em euro e iene – e estão tentando fazê-lo. Se o Banco Central Europeu e o Banco do Japão intervierem, isso torna ainda mais fácil para esses países da periferia se livrarem dos dólares, justamente porque eles querem os euros e os ienes que seriam dados em troca por esses dois bancos centrais. Mas isso significa transferir as “batatas quentes” do dólar que ninguém quer, do estoque existente de países como Índia, Rússia e Indonésia para o BCE e o Banco do Japão. Há US$ 7 bilhões de novas “batatas quentes” de ativos em dólares que os EUA emitem todo ano para financiar o déficit em conta corrente. Alguém tem de segurar essas” batatas quentes”, e minha visão é de que um número maior de pessoas não vai querer fazer isso. É um regime instável.
Valor: Quais são os países centrais desse regime?
Roubini: O centro do regime é a China e também o Japão, embora o Japão não esteja intervindo formalmente desde março. O Banco do Japão não está intervindo, mas está essencialmente dizendo aos seus fundos de pensão, seguradoras e bancos: vocês podem comprar ativos em dólar nos EUA e nós garantimos que vamos intervir no futuro para prevenir uma apreciação do iene. Essa promessa de intervenção faz o setor privado efetivamente comprar ativos em dólar. China e Japão estão no centro do regime, mas se outros estão saindo, como Rússia, Índia, Indonésia, Malásia ou outro país que tenta diversificar do dólar para euro e iene, em algum ponto isso coloca pressão sobre a moeda européia e a japonesa. Isso também coloca mais pressão sobre a China. No momento, muito dinheiro arisco está indo para a China, que está intervindo no mercado e acumulando reservas agressivamente. Eles estão comprando US$ 100 bilhões a mais por ano do que a soma do superávit em conta corrente e do fluxo de investimento direto, porque o país tem recebido muito dinheiro arisco. A China intervém no mercado, depois compra ativos em dólar e assume o risco cambial. Isso coloca muita pressão sobre a China, e em algum ponto o país vai perceber que esse jogo não o beneficia.
Valor: Quais são os problemas para a China?
Roubini: Se a China comprar de US$ 200 bilhões a US$ 300 bilhões por ano nos próximos três anos, eles vão estar sentados em US$ 1,2 trilhão de ativos em dólar. Nesse cenário, uma apreciação de 30% do yuan significaria US$ 300 bilhões de perdas. Isso é 20% do PIB da China. O argumento usual é que a China não vai mudar a estratégia porque eles querem uma moeda fraca para crescer 8% a 10% ao ano. Mas há custos que começam a ficar muito grandes. Há os custos da expectativa de perdas futuras, de uma bolha de ativos, de uma bolha de crédito, de inflação. O processo de acumulação de reservas está ficando cada vez mais custoso. Vai levar mais algum tempo para o país desistir do jogo, mas até mesmo a China vai perceber que os custos de manter esse Bretton Woods 2 são maiores que os benefícios.
Valor: O sr. é um crítico ácido do governo Bush. Quais são os principais erros do atual governo?
Roubini: O grande erro é a política fiscal, em particular a decisão de reduzir impostos repetidamente. Sem mudanças nas políticas, o déficit pode atingir mais de US$ 1 trilhão nos próximos de dez anos. Não se pode apenas ajustar os gastos. Para ter mais ajuste, é necessário reverter alguns cortes de impostos. Além disso, a idéia de privatizar a Previdência Social é muito perigosa, porque acrescentaria US$ 200 bilhões de déficit para os próximos 20 anos. Acho que os EUA não vão mudar a política fiscal enquanto não houver uma punição pelo mercado, que deve ocorrer não apenas por meio da queda do dólar, mas também por meio da alta dos juros de longo prazo. Esses déficits não mudaram porque os bancos centrais asiáticos e o resto do mundo estão comprando títulos do Tesouro americano. O mundo financia o déficit fiscal dos EUA e 90% vem dos bancos centrais estrangeiros. Os EUA não vão mudar a política fiscal porque o governo acredita que o déficit não importa. E enquanto conseguir financiar o déficit a um custo baixo, eles continuam a dizer isso. Por isso acho que será necessário um crash do dólar e um movimento nos juros dos títulos de longo prazo para que os EUA mudem sua política. Enquanto isso não ocorrer, eles não vão mudar e vão continuar a viver em sua própria bolha.
Valor: O Brasil melhorou alguns indicadores de solvência nos últimos dois anos, principalmente a relação entre dívida externa e exportações. A vulnerabilidade externa do país acabou?
Roubini: A vulnerabilidade externa do Brasil certamente é menor do que há alguns anos, pois o país fez reformas econômicas e mudanças na política fiscal. Houve melhora nas contas externas. Acho que o Brasil tem de ficar alerta e manter as políticas que ao longo do tempo vão levar a estabilizar e reduzir indicadores de solvência como a relação dívida/PIB e dívida/exportações. O mundo é perigoso. Problemas podem ocorrer. O ano passado foi excepcionalmente favorável, porque houve elevado crescimento global, taxas de juros baixas nos EUA e no mundo e preços de commodities altos. Mas, olhando para frente, eu temo que o cenário externo para mercados emergentes vai ser mais difícil, devido aos juros mais altos, preços de commodities menores e menor crescimento global. Há a instabilidade vinda dos EUA.
Valor: Se o seu cenário pessimista se concretizar em 2005 ou 2006 o Brasil vai sofrer muito?
Roubini: Se houver um pouso forçado da economia americana todo mundo vai sofrer. Se os EUA entrarem em recessão, o mundo entra em recessão e a situação ficará feia para os mercados emergentes. Todo emergente sofreria muito, incluindo o Brasil.
Valor: O risco-Brasil está na casa de 400 pontos, um nível baixo para padrões brasileiros. Apesar disso, o BC está elevando os juros desde setembro. Os juros reais estão na casa de 12%. O Brasil precisa de juros reais nesse nível?
Roubini: A minha visão sobre política monetária no Brasil é de que, de um lado, é necessário ser cauteloso para que as expectativas de inflação não saiam do controle, o que pode ser um dos motivos para a alta dos juros. Mas, de outro lado, os juros reais estão muito altos e ao longo do tempo isso vai atingir a economia. Eu essencialmente seria mais flexível com a meta inflacionária. Você não quer obviamente perder controle das expectativas de inflação, mas nesse trade off entre inflação e crescimento, acho que o Brasil precisa de mais crescimento. Eu sei que é algo controverso de se dizer, porque também é perigoso afrouxar a política monetária para ter mais crescimento e isso levar à perda do controle das expectativas de inflação, o que certamente não é desejável. Mas é possível fazer que a política monetária seja mais frouxa, a inflação suba um ou dois pontos percentuais e se obtenha mais crescimento. A ênfase no controle da inflação e em juros reais elevados está enviesando a política monetária numa direção com a qual eu não estou confortável.
Valor online
14/2/2005