PITTORESCA – O Friccò que conquistou a namorada e a maior cidade do país
21/01/2022
Por 21 anos, restaurante trouxe com exclusividade a culinária umbra a São Paulo, tornando-se um marco na gastronomia italiana na capital paulista
De certa forma, havia ali um pouco da Umbria com as imagens de São Francisco ao nosso lado, a caricatura de um padeiro no alto da parede com seus pães frescos, como frescos também eram alguns dos ingredientes nos produtos servidos no local. Senti saudosismo nos olhos de Sauro Scarabotta, 56 anos, umbro de Gubbio, morador no Brasil há quase 30 anos.
Estávamos em uma padaria artesanal em plena São Paulo e Sauro me contava como inovou a gastronomia italiana oferecida na cidade através de seu restaurante, o Friccò.
Por 21 anos, o Friccò foi o primeiro e único restaurante especializado em culinária umbra na capital paulista. Naquele pedacinho da Umbria situado na Vila Mariana, os clientes puderam conhecer um pouco da cultura desta região central da Itália, conhecida como o “coração verde” do país – devido a seus muitos bosques e colinas.
Friccò de frango servido no restaurante de Sauro Scarabotta em São Paulo / Arquivo Friccò
No estabelecimento eram servidas entradas mistas (o “antipasto” em italiano), muita carne de porco e porções de embutidos ao modo umbro. Não nos esqueçamos do friccò, prato típico que deu nome ao local, uma mistura de duas carnes (em geral, de porco, coelho ou frango) com molho e legumes.
O segredo do sucesso? Unir o sabor das iguarias umbras, com a sua cultura que dá preferência a matérias-primas frescas, aliadas a uma oferta de mercado competitiva: produtos de qualidade com baixo custo, algo que não existia nos restaurantes italianos no Brasil no final dos anos 1990.
“Quando abrimos o Friccò, em 1997, havia no Brasil restaurantes que ofereciam uma alta qualidade [nos pratos] com preços altíssimos e restaurantes que ofereciam pratos com ingredientes de média e baixa qualidade a preços populares. Inovamos criando o meio-termo, algo que já existia na Itália”, comenta Sauro.
O comentário ilustra o contexto que o Brasil viveu até os anos 1990, quando a abertura comercial no país começou a se concretizar. No início da década seguinte, ainda era tímida a presença de produtos agroalimentares do exterior nas prateleiras dos mercados nacionais.
Sauro com parte de sua equipe e seu filho Enrico em frente ao restaurante Friccò / Arquivo Friccò
Isso justifica, em partes, a improvisação e a adaptação de muitos pratos típicos italianos na falta de ingredientes originais, bem como, a criação de tantos outros que surgiram no país. Na visão de Sauro, que além de empresário, é chef de cozinha, a falta de conhecimentos técnicos e culturais em grande parte da mão-de-obra brasileira no setor enogastronômico contribui para acentuar esse quadro, que ainda segundo ele, persiste até os dias atuais.
Três décadas após o fortalecimento das relações bilaterais entre Brasil e Itália, hoje é cada vez mais comum a presença de matérias-primas agroalimentares italianas no país, muitas com os selos europeus de qualidade e certificação de origem. Campanhas locais como as realizadas pela Câmara Ítalo-Brasileira de Comércio, Indústria e Agricultura de São Paulo (Italcam) e outras feitas em parceria com o governo italiano, como o True Italian Taste, ajudam a promover e a incentivar o consumo de produtos regionais italianos, muitos deles ainda desconhecidos de grande parte da população brasileira.
Friccò de Frango
A adaptação de matérias-primas locais para a composição de pratos italianos também recaiu no prato típico da Umbria, o friccò, que deu nome ao restaurante. Apesar da ligeira adaptação no preparo, o resultado “não comprometeu a receita original”, esclarece Sauro.
O restaurante de Sauro, em sociedade com sua esposa, a administradora de empresas Rita Russo Scarabotta, 53, abriu as portas com o nome de Friccò de Frango. Além do preço estável do frango na época, após várias crises inflacionárias nos anos anteriores, Sauro utilizou o frango para preparar, pela primeira vez, um friccò à Rita, quando o casal ainda namorava.
“Naquela noite, Sauro me disse que ia fazer um prato típico da cidade dele, o friccò. Achei [o prato] uma delícia! Era um refogado de frango, com tomate, vinho branco, alecrim, alho… ”, conta Rita.
Cozido de carne de lebre servido no Friccò, uma tipicidade da culinária umbra / Arquivo Friccò
Mas o nome não durou muito tempo, pois levou o público a pensar que o restaurante servia apenas frango e, por isso, o nome foi simplificado para Friccò.
Muito além do frango, na cozinha do Friccò não faltavam pratos com ingredientes umbros obrigatórios: azeite de oliva, muita carne de porco, carne de coelho e de javali – um pouco menos, já que no Brasil não existe o hábito de comer coelho e javali -, salame umbro, algumas receitas com peixes, como a truta, que remonta o sabor do Nera, um dos rios da Umbria, além das trufas da região.
“Eu ia sempre à Umbria para comprar trufas da estação, tanto a negra, quanto a branca. E claro, eu as oferecia ao público a um preço competitivo, muito mais barato em relação àqueles que as adquiriam por intermediários”, revela Sauro.
O hábito de consumir produtos da estação frescos é típico da cultura umbra. Sem perder este costume, Sauro aproveitava o clima tropical do Brasil, que facilita obter determinadas matérias-primas o ano todo, na cozinha de seu restaurante.
“Ensinamos aos nossos fornecedores e clientes que um produto de qualidade não precisa necessariamente ser caro. Precisa ser fresco, da estação. Consumir uma abobrinha fresca, recém-colhida, é tão bom quanto comer uma trufa fresca”, conclui.
Clientes
Com essa lógica, o Friccò deu certo. O público fazia fila para almoçar e jantar no restaurante. A crítica gastronômica local aprovou o estabelecimento e sua cozinha e, com isso, o Friccò recebeu o prêmio Paladar 2013, do jornal O Estado de S.Paulo, na categoria melhor charcutaria italiana, cujos produtos passaram a ser produzidos por Sauro com as técnicas de sua terra natal.
Dentre a clientela fiel, estava Aldo Spina, 74 anos, umbro de Cannara, província de Perugia.
Aldo Spina (à direita) se sentia em casa no Friccò / Arquivo pessoal
Na memória de Aldo sobre os tempos do Friccò, além de pratos clássicos da região como a porchetta (feita com o porco inteiro) e a quaglie ripiene (ou codorna recheada), estão também cenas afetivas, como a da “senhora de cabelos brancos de um dos lados da cozinha que com seus dedos finos, amassava, moldava e recheava os cappelletti na frente de todos e o perfume rescendia… Então, o próprio Sauro nos trazia os cappelletti em uma tigela fumegante”, recorda-se Aldo.
A senhora a que Aldo se refere, é a também umbra Marisa Sollevanti Franceschetti, conterrânea do proprietário, funcionária do local por cerca de 10 anos.
Marisa Sollevanti Franceschetti, natural de Gubbio, trabalhou por quase 10 anos no Friccò / Arquivo Friccò
É claro que, às vezes, Sauro se defrontava com clientes que naturalmente queriam reproduzir certos hábitos brasileiros, como o de colocar limão no salame, o que para um umbro, não se faz – ao menos, com os salames da Umbria.
“Explicava a esses poucos clientes que quando um salame é de boa qualidade, com boa matéria-prima, não há necessidade de se colocar limão para melhorar o sabor. E as pessoas entendiam”, diz Sauro aliviado.
Festas e tradições
Além das tradições gastronômicas, estar no Friccò remontava à Umbria. O ambiente, que não era “nem muito informal e nem muito luxuoso”, segundo o seu titular, era decorado com mesas e cadeiras de madeira rústica, enquanto as paredes traziam imagens do “coração verde da Itália”: seus vales, suas cidades medievais, suas festas típicas. Nas palavras de Aldo, “Sauro tinha muito orgulho de suas origens”.
Na retomada de seu passado na Itália, Sauro costumava reproduzir no mês de maio uma das festas populares mais importantes da Umbria, surgida em Gubbio, sua cidade: a Festa dei Ceri (“Festa das Ceras”, em tradução livre). Os ceri são candelabros feitos de lenha – inicialmente, eram feitos de cera – que estão representados na bandeira da região umbra. Há várias versões para a origem desta festa milenar, porém, a mais aceita diz respeito à devoção do povo de Gubbio ao bispo local Ubaldo Baldassini, falecido em maio de 1160.
Imagens e apetrechos da Umbria faziam parte da decoração do Friccò / Arquivo Friccò
Sauro relembra que para celebrar a data em seu restaurante, os “garçons se vestiam de ceraioli, um traje típico da Festa dei Ceri”.
Harmonizações de vinhos com pratos umbros e piqueniques ao ar livre, algo corriqueiro da cultura umbra, também eram oferecidos aos frequentadores do Friccò.
Ali, Aldo se sentia em casa. “Muitas vezes, fazíamos, no restaurante, reuniões de imigrantes umbros que moram em São Paulo. Os encontros terminavam sempre com risadas sonoras e com o rosto avermelhado pelo vinho”, revela.
Família umbra durante jantar no Friccò / Arquivo pessoal
Fechamento
Em 2018, com 21 anos de existência e após ter se tornado um marco da gastronomia italiana na capital paulista, o Friccò fechou suas portas. Por questões econômicas e morais, relativas à manutenção da qualidade do serviço e princípios da marca, o casal Scarabotta decidiu encerrar as atividades do restaurante, após analisar também uma possível venda da casa.
O casal Sauro e Rita Scarabotta, sócios do restaurante Friccò / Arquivo Friccò
“A Rita e eu acreditamos que tudo tem um começo, um meio e um fim”, justifica-se, Sauro. “Assim como abrimos, fechamos”, complementa.
Umbria hoje em São Paulo
Com o fim do restaurante Friccò, São Paulo deixou de ter sua referência umbra. Porém, no restaurante Sughetto na capital, é possível encontrar pratos típicos da cidade de Orvieto.
Em alguns projetos de promoção da gastronomia italiana, como a Settimana della Cucina Regionale Italiana, que ocorre anualmente no mês de novembro, a Umbria tem sua cozinha representada.
Na edição de 2021, Sauro Scarabotta e Aldo Spina, ao lado de outros amigos umbros, foram ao restaurante Maremonti para saborear algumas das delícias da região, que além de friccò e porchetta, tinha no menu pratos como strangozzi alla norcina (massa fresca típica de Norcia, com cogumelos, linguiça e creme de trufas), medaglione di cinghiale (medalhão de javali) e millefoglie di rocciata di Assisi (mil folhas da cidade de Assis). Tudo servido ao modo italiano: antipasto (entrada), primeiro prato (uma massa), segundo prato (uma carne) e sobremesa.
Umbria no Brasil
Eventualmente, a Associação Umbros do Brasil, que reúne mais de 1.000 associados, dentre imigrantes e descendentes, realiza alguns encontros ao modo umbro para reviver a cultura da região. A primeira reunião de 2022 está prevista para a última semana de janeiro na cidade de Bragança Paulista, a 86km de São Paulo, e será celebrada com uma boa porchetta como manda a tradição.
Os sabores da Umbria também estão em restaurantes espalhados pelo Brasil, como o Fornace, em Cachoeira Paulista (SP), Casual Sabor em Piedade (MG) e Miracolo em Paraty (RJ).
Bruna Galvão é jornalista especializada em Itália / bruna.galvao@agenciacerne.com.br