PITTORESCA – A italianidade na telinha
30/01/2023
Longe dos erros e estereótipos difundidos na ficção cinematográfica estrangeira sobre o país, o “vivere all’italiana” evidencia-se em detalhes de cenas de produções da Itália
Apesar de admirar o cineasta mexicano Guillermo del Toro, confesso que tive um siricutico com a nova versão de Pinocchio, exibida na Netflix. Ainda no começo da animação, ao passear com seu filho de carne e osso pelo povoado em que moram, alguém elogia Geppetto ao modo típico americano: “é um bom italiano!”. Talvez Carlo Collodi, autor do livro As Aventuras de Pinóquio – História de uma Marionete, com primeira publicação em Florença em 1883, tenha desistido de se revirar no túmulo após tantas adaptações grosseiras não de sua história, mas da cultura toscana-italiana em um cenário cujas versões se mantêm na Itália. No episódio sobre Pinocchio no programa Teatro dos Contos de Fadas, exibido no Brasil nos anos 1990 pela TV Cultura – a série completa está disponível dublada no youtube – , Geppetto oferece panquecas no café da manhã para o boneco de madeira. Pergunto: por que não oferecer cornetto ou brioche, como são conhecidos, respectivamente, os croissants no centro-sul italiano ou no norte do país, um clássico do desjejum italiano?!
Claro que a obra de Collodi não é a única a ser vítima da americanização nas adaptações espalhadas por aí. Há também o problema dos estereótipos reproduzidos a torto e a direito em muitos filmes e séries sobre a Itália. Um dos mais toscos do gênero que vi recentemente é Amor em Verona, também na Netflix. Além de ser o cúmulo do clichê das comédias-românticas – um homem e uma mulher desconhecidos são obrigados a conviver juntos por um tempo e entre tantas brigas, se apaixonam –, o longa americano também se esforça para mostrar, o tempo todo, uma imagem muito distorcida do que é ser italiano. A protagonista, uma americana apaixonada pela história de Romeu e Julieta, desembarca em Verona, cenário do clássico de Shakespeare, com seu agasalho com desenho da bandeira italiana em formato de coração que a veste em 99% das cenas, e imediatamente se dá conta que chegou à Itália: há o taxista que fala alto, gesticula o tempo todo e dirige pela cidade como se estivesse em um rally e há também o dono do apartamento alugado, que cometeu um erro na locação e não se preocupa em resolver o problema de imediato.
Mas nem tudo está perdido em Amor em Verona. Talvez para reforçar o que para os americanos – e, neste caso, também para os brasileiros – seja (mais) uma bizarrice do vivere all’italiana, o filme traz, acertadamente (ao menos pesquisaram alguma coisa da cultura local para o roteiro), um prato típico da cidade: a pastissada de caval. Tendo como base a carne de cavalo, é uma iguaria veronese tradicionalíssima, consumida na região desde a Idade Média.
Salvatore e Valentino em cena de “Que Cilada!” pelas estradas “tranquilas” da Sicília / Netflix
Para compreender melhor uma cultura sem cair em erros ou estereótipos, nada melhor do que assistir produções do próprio país. No streaming há uma infinidade de bons materiais que mostram, muitas vezes em pequenos detalhes, a italianidade a partir dos próprios italianos ou de seus descendentes. Selecionei algumas:
Que Cilada!
Nesta comédia policial com seis episódios protagonizada pela famosa dupla Salvatore Ficarra e Valentino Picone, o jeitinho italiano está na ironia com que a trama apresenta a máfia siciliana: quando o chefão da máfia é craque em fazer um bom molho de tomate e em servir um clássico espaguete para os seus comparsas ou sobre o hábito em comprar produtos alimentares frescos à beira da estrada – ainda que em meio a uma perseguição policial.
O entendimento sobre vinhos também é um detalhe que evidencia a cultura italiana: em meio a um jantar romântico com Valentino, a policial Agata comenta que é preciso esperar alguns minutos para que o vinho recém-aberto aguce o seu potencial.
As trapalhadas de Salvatore e Valentino são narradas ao modo clássico da comédia italiana: um humor popular e exagerado, mas que diverte. Como bônus, estão as belíssimas paisagens sicilianas.
Disponível na Netflix.
Caffè Sospeso e Fidelidade
Caffè Sospeso é um documentário que aborda a cultura do café em três cidades pelo mundo: Nápoles, Buenos Aires e Nova York. O hábito de frequentar cafés é muito forte na Itália. Assim, nas cenas em italiano, gravadas em Nápoles, vemos um professor a explicar o fenômeno social em torno de um convite para um café – ele deixa claro que não necessariamente os envolvidos sejam obrigados a tomar café. Outro comentário do orientador é sobre a presença do café em todas as classes sociais e como, no passado, alguns estabelecimentos de elite ditavam quem poderia ou não tomar um café ali – ainda percebo esta evidência em muitos lugares atuais.
A expressão “caffè sospeso”, título do documentário, refere-se a um projeto social criado em Nápoles para atender aqueles que não podem pagar por um café. Traduzido como “café em aberto”, de acordo com o filme, a iniciativa tem agradado turistas, que deixam um café pago para um necessitado, cabendo ao barista, a escolha para quem oferecer um caffè sospeso.
Já em Nova York, uma americana, filha de italiano, relembra alguns hábitos do pai: a forte presença do café em seu cotidiano, suas exigências para o preparo da bebida e a cultura de se sentar à mesa para almoçar e ali permanecer por horas.
Além do café, um detalhe de outro costume da italianeidade em uma cena de Caffè Sospeso é quando dois homens, em Nápoles, se beijam no rosto para se cumprimentar durante o início do expediente em um café.
Na ficção, a série italiana Fidelidade, cuja trama se passa em Milão, reproduz o hábito de frequentar cafés: em diversas cenas, os personagens desabafam seus problemas nestes estabelecimentos – ainda que acompanhados de outras bebidas. Foi também em um café que os cônjuges protagonistas Margherita e Carlo iniciaram um namoro.
Caffè Sospeso e Fidelidade estão disponíveis na Netflix.
Dinner Club e 4 Ristoranti
Dinner Club e 4 Ristoranti são reality shows, que, mais uma vez, têm a comida como foco. Ambos realçam a importância das tradições em pratos típicos regionais durante o preparo e o consumo dos alimentos. Sendo realities, quem não cumprir à risca tais regras, perde pontos na competição.
Alessandro Borghese na 4ª temporada de 4 Ristoranti, cujo 7º episódio mostra a cidade de Acqualagna, em Marche / Reprodução Youtube
Em Dinner Club, os participantes são artistas famosos na Itália. Nomes como Pierfrancesco Favino, Diego Abatantuono, Sabrina Ferilli e Luciana Littizzetto se sentam à mesa para jogar conversa fora e dividir as refeições – sempre sem pressa. Quem cozinha é quem viajou por alguma região italiana e aprendeu a fazer um prato típico, que deverá ser servido aos demais com todo rigor. Todos os participantes viajam e cozinham em algum momento.
Dinner Club está disponível no Prime Vídeo com áudio em italiano e legendas em inglês, espanhol, francês, alemão e italiano.
Já 4 Ristoranti é um dos programas de TV mais amados da Itália (inclusive, por mim!). Apresentado pelo famoso chef Alessandro Borghese – que se tornou uma celebridade nacional com o sucesso do reality show –, a ideia é desafiar quatro restaurantes de uma mesma localidade levando em consideração serviço, estrutura, preço e qualidade dos pratos. Os donos de restaurantes avaliam uns aos outros e Borghese dá a cartada final.
O interessante de 4 Ristoranti é a forma como a regionalidade espalhada pela Itália muda completamente, o que evidencia várias Itálias dentro de uma só: das tradições medievais ao consumo de trufas no centro do país ou de peixes no litoral, até a influência externa nos sabores e nas expressões idiomáticas na fronteira, o programa deixa claro para eventuais telespectadores estrangeiros que a Itália é muito mais do que pasta e pizza.
Na Itália, 4 Ristoranti é exibido pela Sky TV. Quem está fora do país, pode assistir várias temporadas pelo youtube: porém, apenas em italiano, sem legendas.
BRUNA GALVÃO é jornalista especializada em Itália / pittoresca@pittoresca.com.br
Imagem de capa: Dinner Club / Reprodução Amazon