O novo ciclo da cana-de-açúcar
09/01/2009
Nem senhor-de-engenho, nem coronel.O mercado de açúcar e álcool é hojeum negócio só para grandes empresas
Por Alexa Salomão
EXAME Na mente do brasileiro, a produção de cana-de-açúcar sempre esteve associada a dois estereótipos. Primeiro, ao senhor-de-engenho, personagem que — da época das capitanias hereditárias às gravuras de Jean Baptiste Debret ou às páginas de José Lins do Rego — extraía um poder político quase ilimitado da riqueza dos canaviais. Segundo, em tempos mais recentes, ao coronel usineiro — figura associada aos escândalos de corrupção, à promiscuidade com o Estado e ao primado da força das armas sobre a razão econômica. Pois a realidade atual não poderia estar mais distante desses estereótipos. O aumento do consumo de açúcar e de álcool no mundo está transformando o setor canavieiro no mais promissor negócio da agroindústria brasileira. Desde a extinção do Instituto do Açúcar e do Álcool, em 1990, a mão pesada do Estado foi substituída pela lei do mercado. Com isso, uma nova geração de produtores de cana aposentou o conchavo político como meio de subsistência e passou a encarar o negócio com uma visão profissional. O resultado é uma verdadeira revolução no mundo da cana.
As dimensões dessa transformação são superlativas. De 2000 para cá, as exportações brasileiras cresceram de 258 milhões de litros de álcool para 2,4 bilhões, e as receitas, de 33 milhões de dólares para quase meio bilhão por ano. O açúcar brasileiro já movimenta 70% dos contratos na bolsa de mercadorias de Nova York. E esses números ainda devem crescer. Um levantamento da consultoria MB Associados mostra que, nos próximos dez anos, as exportações de álcool podem alcançar 6,9 bilhões de litros — quase o triplo do total embarcado no ano passado. As de açúcar têm potencial para atingir 20,5 milhões de toneladas, um crescimento de 30%. Para atender à crescente demanda externa, os canaviais começam a avançar sobre outras culturas. A previsão é que a área de cana plantada aumente 50% até 2015. O impacto na cadeia de produção — da compra de máquinas, passando pela colheita, aos embarques no porto — será enorme. Pelas estimativas da Unica, entidade que reúne produtores paulistas, o faturamento do setor pode dobrar até o final da década, atingindo 25 bilhões de dólares anuais. Hoje, a única atividade rural com cifras tão graúdas é a agroindústria da soja, que movimenta 30 bilhões de dólares por ano.
“Estamos assistindo a um novo ciclo da cana-de-açúcar”, afirma Plinio Mário Nastari, presidente da consultoria especializada Datagro. Trata-se de um fenômeno totalmente diferente da bolha gerada pelo Proálcool, nos anos 70 e 80. Com o setor regulamentado, o Estado determinava quanto plantar, quando e por quanto vender. Agora, os empresários estão erguendo uma indústria eficiente, com base em indicadores de produtividade e tecnologia moderna. Na Índia, outro grande produtor de cana, há 25 milhões de pequenos fornecedores que ainda empunham facões. No Brasil, os usineiros se agruparam em companhias agrícolas, dividem máquinas, distribuição e comercialização, e o nível de tecnologia vem subindo. Há tratores monitorados por satélite, máquinas de adubagem com controle eletrônico e colheitadeiras de precisão. Cerca de 25% das propriedades mecanizaram a colheita — em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, sede de quase 30% da produção canavieira do país, foram 50%.
Do passado, ficou a tradição familiar. No comando das 80 maiores entre as mais de 300 usinas do país, estão sobrenomes de elite. Os Ometto, clã mais tradicional do interior paulista, comandam as duas maiores usinas: a Da Barra, cujo dono é Rubens Ometto, do grupo Cosan, e a São Martinho, administrada por Homero Corrêa de Arruda Filho. Os Junqueira estão por trás da comercializadora Crystalsev, parceira da americana Cargill em portos, usinas no Brasil e fábricas no exterior. Trata-se de uma das maiores famílias rurais do mundo, com quase 100 000 descendentes do casamento de Elena Maria e João Francisco Junqueira, que, no século 18, eram donatários de sesmarias em Minas Gerais. Os Balbo hoje personalizam a agricultura auto-sustentável no setor. Criaram a Native, marca de açúcar orgânico de Sertãozinho, interior de São Paulo, exportada para mais de 30 países. Os Zillo, do grupo Zillo Lorenzetti, detêm três usinas e cultivam cana em 15 municípios no centro-oeste do estado de São Paulo. Do interior da França, onde mora, o líder familiar José Luiz — um empresário enérgico que, nos anos 80, presi diu a Copersucar — palpita nos negócios do grupo.
Como as famílias se multiplicam mais rápido que as usinas, são comuns divergências nas partilhas entre parentes. Recentemente, os herdeiros de uma das estirpes mais tradicionais da cana, os irmãos Biagi, viveram momentos de tensão. O irmão mais velho, Maurílio Biagi Filho, fez um acordo com os sete irmãos e abandonou uma das maiores usinas do Brasil, a Santa Elisa, em Sertãozinho. Foi ali que ele havia nascido, passado parte da infância e tocado os negócios por quase 45 anos. Pelo acordo, Maurílio ficou em outras três usinas. Entre elas, a Moema, de Orindiuva, em São Paulo, cujo faturamento triplicou em apenas cinco anos e hoje está em 400 milhões de reais por ano. A unidade exporta quase 70% da produção de açúcar.
A maior aposta dos usineiros nesse novo ciclo é o recém-nascido mercado internacional de álcool combustível, ou etanol, como aditivo à gasolina. Com o preço do barril de petróleo em alta, o mundo se vê obrigado a achar um combustível mais barato — e a adição do álcool é uma opção natural. “Com o preço do petróleo nas alturas, o álcool se tornou competitivo”, diz José Carlos Hausknecht, da MB Associados. Para as 30 nações industrializadas, entre as 141 que aderiram aos protocolos de Kyoto, pesa ainda a responsabilidade de reduzir as emissões de gás carbônico — e aí, novamente, o álcool é uma alternativa. “O mundo está ávido por um substituto do petróleo”, diz Nastari, da Datagro. “O álcool despontou como alternativa viável no curto prazo.”
Até os Estados Unidos, por pressão ambiental, começaram a usar o etanol misturado à gasolina. A produção americana passou de 5 bilhões de litros em 1994 para 13 bilhões de litros no ano passado. Em 2005, os americanos devem fabricar 15 bilhões de litros de álcool de milho e de outros cereais. Quanto mais países adotarem o etanol, melhor para o Brasil. Em visita ao Japão, uma das fronteiras promissoras para o álcool brasileiro, a comitiva do presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez um esforço para rebater as críticas das companhias locais de petróleo — a Nippon Oil exibiu estudos afirmando haver desvantagens no uso do álcool brasileiro. Além da oportunidade externa, as usinas nacionais já funcionam a todo o vapor para dar conta de um fenômeno restrito ao Brasil: os carros com motor bicombustível — movidos a álcool, gasolina ou uma mistura de ambos. A aceitação superou as expectativas mais otimistas. O primeiro carro bicombustível foi lançado em março de 2003 pela Volkswagen, e, em abril deste ano, as vendas chegaram a 67 500 veículos novos, superando pela primeira vez as de modelos a gasolina. Os bicombustíveis já representam 49,5% dos veículos novos leves do país.
A febre do álcool mudou também o mapa do setor. Os usineiros nordestinos agora se expandem pelo Centro-Sul, onde as chuvas e novas técnicas de plantio no cerrado têm aumentado a produtividade. O grupo Tércio Wanderley — que controla, em Alagoas, a Coruripe, maior usina do Nordeste — tem hoje três unidades em Minas Gerais. Entre os grupos que mais cresceram está o J. Pessoa, de José Pessoa de Queiroz Bisneto, descendente de usineiros de Pernambuco. Ele vem estendendo seus domínios no Sudeste por meio de aquisições desde os anos 90. O grupo já tem oito usinas em operação e três em construção. Em São Paulo, Ribeirão Preto está deixando de concentrar os negócios do setor. Hoje existem 45 projetos de construção de novas unidades, um investimento de 4 bilhões de reais, principalmente em Minas Gerais e em outras áreas do interior paulista. Quase metade dos novos empreendimentos está na região de Araçatuba, reduto da pecuária, onde as terras são até um terço mais baratas que em Ribeirão Preto. A Dedini, principal fabricante de equipamentos para usinas, está erguendo uma fábrica na cidade. A pujança assusta até os empresários mais experientes. “Há projetos de usina um ao lado do outro”, diz Roberto de Rezende Barbosa, presidente do grupo Nova América, dono da marca de açúcar União. “Não dá para saber quantos vão vingar.” Outro risco é o excesso de oferta. “Temos potencial para crescer, mas não podemos antecipar a demanda e gerar excedentes”, diz João Carlos de Figueiredo Ferraz, presidente da Crystalsev.
O açúcar vive uma expansão diferente. O consumo cresce 2% ao ano, e as vendas enfrentam forte concorrência dos adoçantes. Mas dois fatores podem mudar essa situação. O pri meiro é a urbanização nos países em desenvolvimento. Quanto mais habitantes nas grandes cidades, maior o consumo de produtos industrializados que incluem açúcar na receita, como ketchup ou Coca-Cola. Os chineses, que vivem um êxodo do campo para a cidade, são os maiores consumidores em potencial. Há três anos, o consumo per capita de açúcar na China era de 6 quilos. Hoje, é de 8. Se essa tendência continuar, o crescimento pode ser estron doso — no Brasil, o consumo é de 55 quilos e, nos Estados Unidos, de 77. Os usineiros também ficaram animados com a decisão da Organização Mundial de Comércio de condenar os subsídios às exportações dos países da União Européia. Se a sentença for cumprida, nos próximos dois anos se abrirá um mercado de 1,2 bilhão de dólares por ano para o açúcar brasileiro.
A vantagem brasileira
O Brasil tem o menor custo de produção de açúcar e de álcool entre os principais competidores do mercado internacional.
“Mas o maior desafio do setor não está além das fronteiras do país”, afirma Renato Gennaro, consultor da BCS, área de consultoria da IBM. “Está em melhorar a qualidade da gestão.” Uma pesquisa com empresários e executivos de 40 grupos do Centro-Sul identificou vários pontos fracos nesse quesito. Há resistência à profissionalização, e 90% dos entrevistados não entregariam o comando a um executivo. O estudo afirma ainda que falta planejamento estratégico — o usineiro não enxerga adiante da próxima safra. O caixa da empresa ainda se confunde com o bolso do dono. Os empresários olham mais para o próprio quintal que para a logística. Pelas estimativas da BCS, muitos grupos não terão força para sobreviver ao novo ciclo da cana. “Os mais fracos terão de deixar o mercado”, diz Gennaro. A tendência é que sejam absorvidos por empresas estrangeiras. “O concorrente não é mais a usina vizinha”, diz Carmen Ruete de Oliveira, do grupo Virgolino de Oliveira, no interior paulista. “É a multinacional, que tem acesso a juros menores e logística mais eficiente.” A americana Cargill comprou em maio a Açucareira Corona, dona de duas usinas paulistas. A alemã Südzucker, a maior produtora de açúcar do mundo, passou os últimos dois anos rondando as maiores usinas, sem fechar negócio. “O processo de consolidação do setor vai se intensificar”, diz Gennaro. “Hoje há 40 grupos controlando 60% do mercado. Em 20 anos, essa fatia vai estar nas mãos de cinco ou seis grandes grupos.”
Portal Exame
16/6/2005