Fazendas do Brasil poderão alimentar o mundo

09/01/2009

Financial Times

Europa e EUA reduzem subsídios de produtores primários –como resultado da auto-afirmação de um país em desenvolvimento determinado a utilizar mais a sua vasta área de terras aráveis

Uma peça de tapeçaria está dependurada no espaçoso escritório de Celso Amorim, o ministro brasileiro das Relações Exteriores. Baseada em uma carta geográfica desenhada por um explorador italiano do século 15, ela mostra um mapa-múndi invertido –com o hemisfério sul no topo.

Os fazendeiros brasileiros, apoiados por uma combativa campanha diplomática e legal feita por lideranças políticas e empresariais como Amorim, também estão virando de cabeça para baixo o mundo agrícola.

Nesta semana, a União Européia (UE) propôs cortes profundos no preço que garantiu aos seus produtores de açúcar. Até a próxima semana, os Estados Unidos deverão anunciar a redução do apoio aos cotonicultores. Tais medidas se devem a ações tomadas pelo Brasil junto à Organização Mundial do Comércio (OMC).

Embora os produtos agrícolas sejam uma parte pequena do cenário comercial total –10% do comércio mundial–, o grande número de produtores rurais existente em uma OMC composta cada vez mais por países em desenvolvimento, combinado à questão altamente polêmica dos subsídios agrícolas às nações ricas, fazem do Brasil uma nação-chave para o futuro comércio global.

O Brasil está para a agricultura assim como a Índia está para o comércio exterior e a China para o setor de manufaturados: é uma potência agrícola a cujo tamanho e eficiência poucos competidores são capazes de se igualar.

Apesar de enfrentar uma das mais altas tarifas agrícolas do Ocidente –uma média de 30% é cobrada pelas nações que importam os produtos brasileiros–, o país é o maior ou segundo maior produtor de açúcar, soja, suco de laranja, café, tabaco e carne bovina, e está ocupando rapidamente posições fortes na produção de algodão, frango e carne suína.

Além disso, o Brasil conta com o maior superávit comercial agrícola do mundo –US$ 34 bilhões, ou 5% do produto interno bruto do ano passado, uma cifra que é a principal responsável por fazer com que o país tenha apresentado um saldo positivo na balança comercial.

Para um país que luta para pagar a sua enorme dívida externa, as exportações agrícolas têm sido uma dádiva divina.

Carlo Lovatelli, presidente da Associação Brasileira de Agrobusiness, afirma: “O nosso objetivo é fazer com que o Brasil se consolide como um dos principais exportadores agrícolas do mundo, se expanda mais em áreas como a da cotonicultura e continue a exigir acesso aos mercados”.

Certamente existe espaço para expansão. Além dos seus 62 milhões de hectares de terras aráveis, o Brasil possui cerca de 170 milhões de hectares passíveis de serem aproveitados para atividades agrícolas –o que corresponde aproximadamente a toda a área agrícola dos Estados Unidos atualmente cultivada.

Viemos para vencer

A terra ao longo da costa brasileira vem sendo cultivada por gerações. Mas o futuro das fazendas brasileiras está no interior, em locais como o grande Estado central de Mato Grosso. Até 30 anos atrás, milhares de quilômetros quadrados de uma região de cerrado fracamente povoada se estendiam da fronteira com a Bolívia, ao sul, até a Floresta Amazônica, ao norte.

Agora o planalto do Estado foi invadido por grandes campos verdes plantados com algodão e soja, além de bosques ocasionais de eucalipto utilizado para a produção de celulose.

A semelhança com os Estados das pradarias norte-americanas é freqüentemente citada pelos fazendeiros mato-grossenses, muitos dos quais chegaram recentemente à região, vindos de outras partes do Brasil e do exterior.

“O que está acontecendo aqui agora é o que aconteceu no meio-oeste norte-americano no século 19”, afirma Chris Ward, um neozelandês que desenvolve atividades agrícolas no Mato-Grosso há 20 anos. “As pessoas não vêm para cá para ficarem paradas, mas para vencer”.

Grande parte do solo brasileiro é bastante pobre em nutrientes, necessitando de intensa fertilização: segundo um ditado local a sua única função é dar suporte às plantas, mantendo-as de pé.

Mas o país possui um clima quase perfeito, especialmente na área central –meses de chuva torrencial no verão, seguidos por invernos secos e quentes.

Além disso, o Brasil conta com um grande sistema hidrográfico, terras cujos preços são baixos e uma grande reserva de mão-de-obra barata devido às desigualdades salariais e de distribuição das terras entre a sua população de 180 milhões de habitantes.

Essas vantagens tradicionais se combinaram aos investimentos crescentes e ao apoio do governo à tecnologia nos últimos anos para possibilitar o surgimento de fazendas de uma eficiência impressionante.

No setor açucareiro, por exemplo, estimativas do instituto nacional da cana-de-açúcar sugerem que, embora os custos de produção para os seus principais rivais tenham se mantido em torno de US$ 250 por tonelada durante os últimos dez anos, os custos médios no Brasil caíram mais de um terço, ficando em US$ 158 a tonelada.

O país dobrou a sua participação nas exportações mundiais de açúcar, que chegaram a mais de um terço do total na última década.

Com o crescimento do interesse no álcool (etanol) como biocombustível limpo para motores, estima-se que a produção deste produto deva aumentar mais 25% nos próximos cinco anos.

A produção de soja, o maior produto de exportação brasileiro e importante matéria-prima para a alimentação de porcos e frangos, aumentou ainda mais rapidamente em meio a uma rápida globalização do mercado desse grão.

A recente legalização relativa à soja geneticamente modificada no Brasil –de qualquer forma, os produtores dizem que o setor está repleto de sementes geneticamente modificadas contrabandeadas da Argentina–, deve se traduzir em maiores lucros.

Dificuldades dos produtores

Os trunfos do Brasil isso não significam que tudo esteja correndo a favor dos produtores rurais.

Eles enfrentam altas taxas de juros, uma moeda cujo valor aumenta e, para muitos, jornadas tortuosas ao longo de milhares de quilômetros de estradas arruinadas para fazer com que os seus produtos cheguem aos portos na costa.

Carlos Augustin, proprietário de uma fazenda de algodão e soja de 30 mil hectares no centro do Estado de Mato Grosso, diz que os cotonicultores brasileiros são capazes de obter colheitas tão boas, ou até melhores, que as dos norte-americanos, mas acrescenta:

“Se por um lado contamos com terras e maquinários mais baratos, por outro arcamos com custos de frete e de financiamento mais elevados”.

Ele reconhece que essas despesas extras lhe custam entre 20 e 33 centavos de dólar por quilo de algodão no mercado externo, fazendo com que o custo de produção se aproxime perigosamente das receitas.

Se o governo brasileiro conseguir reduzir as taxas de juros por meio da austeridade fiscal, e obtiver dinheiro suficiente para reformar a infraestrutura de transporte, os produtores rurais do país poderão se tornar ainda mais competitivos no mercado internacional.

Por maior que seja a produtividade, nenhum país, e certamente nenhum tão populoso quanto o Brasil, se tornará rico cultivando e exportando apenas produtos básicos –especialmente ao se levar em conta que os preços tendem a cair no longo prazo.

Mesmo o impressionante aumento de produtividade do Mato Grosso fez com que o Estado contribuísse com apenas um pouco mais de 1% para o produto interno bruto do país.

Mas o Brasil está começando a acrescentar valor agregado aos seus produtos. Osler Desouzart, ex-executivo da indústria avícola, e atualmente funcionário da OD Consulting, que presta serviços de consultoria aos exportadores de carne de frango, afirma: “Não há dinheiro na produção de proteína animal. Mas há muito dinheiro no marketing e na venda de produtos animais”.

Na Europa, destino de um terço das exportações brasileiras de frango, muitas companhias alimentícias se baseiam e investem na produção brasileira.

Cada vez mais o valor agregado à cadeia produtiva vai para o Brasil, devido à ajuda de uma estrutura tarifária incomum da UE que impôs taxas de 75% sobre o frango cru, mas de apenas 10% sobre o frango cozido ou processado.

O tikka masala de frango que é vendido nos supermercados do Reino Unido muitas vezes contém temperos acrescentados no Brasil antes que o produto seja congelado e exportado.

Competição desleal

As exportações tradicionais do Brasil e a sua nova produção com valor agregado estão gerando tensões em todo o mundo. Assim como aconteceu com os manufaturados chineses e especialmente com os têxteis, o rápido crescimento de um concorrente que produz a baixos custos gera reclamações de outros países, que afirmam que a concorrência é injusta.

Em um estudo sobre a política comercial do Brasil, publicado no ano passado, a OMC conclui que apoio do governo à agricultura é modesto. Mas essa não é a visão dos aflitos concorrentes, especialmente os países ricos.

Luther Markwart, presidente da Aliança Americana do Açúcar, diz que, ao contrário da avaliação da OMC, o sucesso do Brasil se fundamenta na competição desleal.

“O Brasil faz uso de subsídios, de um programa estatal de álcool e de padrões trabalhistas e ambientais extremamente precários para se tornar o maior produtor mundial de açúcar”, afirma.

Markwart estima que os subsídios governamentais brasileiros ao álcool –todos os carros no Brasil são movidos a álcool ou a uma mistura de álcool e gasolina– equivalem a cerca de US$ 1 bilhão por ano.

Na Europa, os produtores têm reclamações semelhantes. Peter Bradnock, diretor-executivo Conselho Britânico de Produtos Avícolas, diz que os baixos padrões trabalhistas e ambientais brasileiros contribuem para que o frango produzido no Brasil custe a metade do frango europeu.

“Sob o aspecto tecnológico, somos capazes de criar frangos tão bem quanto eles”, afirma. “Mas eles arcam com custos menores, e parte disse reflete os padrões reguladores segundo os quais nós operamos”.

Bradnock diz que autoridades reguladoras em países como Brasil e Tailândia possuem uma “vocação exportadora”: eles farão tudo o que puderem, afirma, para garantirem que as regulamentações não atrapalhem as exportações. Mas Bradnock admite que é praticamente impossível argumentar que tais vantagens violam as regras da OMC.

Enquanto isso, no Brasil não se dá importância às reclamações quanto à suposta concorrência desleal, devido ao forte consenso político em favor da expansão do setor agropecuário.

Governantes apóiam agronegócio

E em lugar algum a aliança entre política e agronegócios é mais evidente do que em Mato Grosso, Estado dominado por uma aliança de fazendeiros e políticos. O governador do Estado é Blairo Maggi, chefe do Grupo Maggi, um grande grupo de agronegócios.

Face às críticas de que as atividades agrícolas em tais áreas beneficiam somente os ricos, ele argumenta que o Mato Grosso não possui alternativas ao modelo de latifúndios que produzem produtos baratos.

“As pequenas propriedades em Mato Grosso não são economicamente viáveis”, afirma Maggi. “Aqui é necessária uma economia de grande escala, como a indústria automotiva. Não se pode plantar milho, soja ou algodão sem grandes propriedades que sejam competitivas no mercado mundial. A globalização ocorreu na agricultura mundial”.

Ele não se opõe aos investimentos nos agronegócios brasileiros por parte de multinacionais como a Cargill, da qual muitos produtores agrícolas brasileiros tomam empréstimos para comprar insumos da própria empresa. Ele frisa que ainda existem vastas áreas disponíveis para a produção sem que se destrua a Amazônia”.

Até mesmo o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente, que possui antigos vínculos com os produtores pobres e os agricultores sem-terra, apóia o grande setor de agronegócios.

Roberto Rodrigues, ministro da Agricultura, é ele próprio um fazendeiro –embora os cavalos, os campos cercados e as terras onduladas em torno da sua idílica e ecologicamente correta fazenda de cana-de-açúcar no Estado de São Paulo lembrem mais o interior da Virginia do que o meio-oeste norte-americano.

Ele fala em tom de lamentação da “exclusão social” que fez com que 200 mil pequenos agricultores deixassem suas terras no Estado de São Paulo após a liberalização e a concentração da agricultura no início dos anos 90, e garante que cerca de um quinto dos subsídios governamentais são destinados aos pequenos produtores rurais.

Rodrigues insiste que o ritmo arrastado da reforma agrária do governo Lula é reflexo da falta de dinheiro, e não da vontade política.

Mas a ambição de Rodrigues é que os agronegócios se expandam, em culturas como a da cana-de-açúcar. Para ele, o ponto marcante foi quando participou da exposição agrícola mundial em Tulare, Califórnia, em meados dos anos 90.

Lá ele descobriu o potencial para aumentos elevados de produtividade por meio da mecanização da agricultura. “Agora, em qualquer lugar do Brasil temos os nossos próprios shows agrícolas”, afirma. “Não quero vender litros de álcool no exterior. Quero vender rios de álcool”.

Uol Midia Global
Financial Times
Alan Beattie
23/6/2005