A linha não pode parar

09/01/2009

Com o aquecimento do consumo, o Brasil vive as dores do crescimento — algumas empresas não conseguem acompanhar a demanda e ameaçam a expansão em cadeias como a automotiva

Por José Roberto Caetano EXAME O crescimento da economia acima de 5% em 2007, apontado pelos indicadores divulgados nas últimas semanas, é uma ótima notícia para o Brasil. É o terceiro ano consecutivo de expansão mais forte e um resultado que, considerando-se o período recente, só perde para os 5,7% registrados em 2004. Tudo estaria perfeito se não fossem as evidências de que gargalos estruturais há muito tempo conhecidos, porém nunca devidamente combatidos, podem estragar a festa, abortando a consolidação nos próximos anos do crescimento na casa dos 5% — finalmente próximo da média mundial, embora ainda abaixo do desempenho de outros emergentes. Aos problemas mais conhecidos, como a precariedade da infra-estrutura e a carência de mão-de-obra qualificada, soma-se agora uma questão nova: a estrutura de produção das próprias empresas tem fôlego para acompanhar o pique da demanda? “O crescimento da demanda representa um desafio para muitas companhias, especialmente as pequenas”, afirma Jackson Schneider, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) e diretor da Mercedes- Benz. “O mercado subiu e caiu muitas vezes nos últimos dez anos. Por isso, há empresas que são cautelosas ao investir no aumento da produção e demoram um pouco para se adaptar ao novo passo.”

No final de 2007, a indústria brasileira como um todo alcançou um nível de utilização da capacidade instalada que não registrava desde 1976, segundo sondagem do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas. A média geral de ocupação chegou a 87%, mas muitas empresas operam acima desse índice e já esbarram no limite. Por isso, mesmo com a forte retomada de investimentos em máquinas, ocorrem estrangulamentos — por enquanto, ainda pequenos — em alguns pontos. A Vale chegou a ter falta de pneus de reposição para sua frota de caminhões. Fabricantes de bebidas, como a Ambev e a Femsa, reclamam por não ter conseguido receber todos os caminhões que encomendaram para seu sistema de distribuição. O problema ocorreu porque as vendas das montadoras de caminhões cresceram 25% no ano, com suas carteiras tomadas por pedidos dos mais diversos setores, da mineração à construção civil. O mesmo se deu no agronegócio, que pressionou a indústria de tratores. A americana Agco, dona das marcas Massey Ferguson e Valtra, foi surpreendida com a recuperação da agricultura de grãos desde o final de 2006 e precisou dobrar a produção de colheitadeiras em 2007 para cerca de 2 000 unidades. Encontrou dificuldades com fornecedores de peças que também ficaram atulhados de encomendas. “Tivemos alguns atrasos no recebimento de pneus, componentes e peças”, diz André Carioba, diretor-geral da Agco na América do Sul. “Os fornecedores não têm culpa, porque não é simples ampliar a produção acima do previsto de uma hora para outra.” Mas os gargalos fizeram com que se formassem filas de espera de até duas semanas para alguns modelos de tratores. “O problema é que a demora dá espaço para o cliente ficar chateado e tomar outras decisões, até mesmo a de fazer uma importação”, afirma Carioba.

O SETOR AUTOMOBILISTICO é um dos que melhor ilustram o desafio atual da demanda. Em meados do ano, o Sindipeças, sindicato que reúne os fabricantes de autopeças, concluiu um estudo com suas 400 associadas para identificar possíveis gargalos para acompanhar o crescimento das montadoras de veículos. A maioria das companhias consultadas afirmou enfrentar dificuldades para ampliar a produção. “Muitas empresas, desde então, foram estimuladas por pedidos de longo prazo das montadoras e fizeram investimentos, mas os projetos levam um tempo para maturação”, diz Paulo Butori, presidente do Sindipeças. “O problema maior está na base do setor, de cerca de 300 empresas menores, a maioria de gestão familiar e com dificuldade em obter crédito para investir.”

Mesmo quem tem conseguido atender à demanda não está com a vida fácil. Os 560 funcionários da Grampos Aço, fabricante de autopeças localizada em Guarulhos, na Grande São Paulo, estão terminando o ano sem as tradicionais férias coletivas que costumavam desfrutar. A medida foi tomada porque os principais clientes da empresa, a Fiat e a GM, mantêm a produção em alta. “Não posso me arriscar a parar”, diz Fábio Fabris, um dos quatro donos da Grampos Aço. Essa situação é generalizada num setor que termina 2007 com quase 400 000 veículos produzidos a mais que no ano anterior — um crescimento de 15% no volume, para o total de 3 milhões de unidades, batendo recorde histórico.

A Fiat, que manteve pelo sexto ano consecutivo a posição de líder em vendas de carros no país, produziu 720 000 veículos e chegou ao final do ano com a fábrica funcionando 24 horas para montar um carro a cada 20 segundos. A logística para sustentar esse ritmo impressiona. Cerca de 3 000 caminhões entram diariamente na fábrica em Betim, nos arredores de Belo Horizonte, carregados com peças, materiais e embalagens. Somente a padaria interna da fábrica produz 21 000 pães por dia para saciar os 23 000 funcionários, entre próprios e terceirizados, que se revezam na produção. Para que não ocorram falhas no suprimento, a Fiat monitora de perto os fornecedores-chave, empresas que montam subconjuntos completos dos carros. “Mantemos 40 dos nossos 280 fornecedores sob vigilância contínua”, diz Vilmar Fistarol, diretor de compras da Fiat. A vigilância começou em 2005, quando a montadora previu que o cenário econômico mudaria para melhor. Desde então, a Fiat tem uma equipe de gerenciamento de gargalos nos fornecedores pilotada pessoalmente por Fistarol.

Esse tipo de trabalho, entre as empresas maiores e sua cadeia de suprimento, disseminou-se no setor. Assim como faz a Fiat, empresas como Bosch, Delphi e Dana prestam uma espécie de consultoria de gestão para que os fornecedores ganhem eficiência e eliminem desperdícios — formas de aumentar a produtividade e também de evitar lapsos no abastecimento. “Pegamos o fornecedor pela mão e o ajudamos a melhorar seus processos, colocando nossos especialistas no chão de fábrica junto com os executivos da empresa”, diz Belasiel Botelho, vice-presidente da Bosch, fabricante de sistemas de injeção eletrônica, que compra componentes de cerca de 500 empresas menores. Os que não se adaptam aos novos tempos podem sair do jogo. “Fazemos uma seleção dos melhores fornecedores para eliminar riscos”, diz Gábor Déak, presidente na América do Sul da Delphi, fabricante de componentes eletroeletrônicos e sistemas de ar condicionado. “De 2003 para cá cortamos um terço do número, de 900 para 600, e queremos diminuir ainda para 500 fornecedores.” Ao mesmo tempo que auxiliam parceiros, as montadoras e as fabricantes de conjuntos estão ampliando os investimentos nas próprias operações. A Fiat já anunciou que investirá 5 bilhões de reais de 2008 a 2010 para aumentar a produção de automóveis no país. A Plásticos Mueller, uma de suas fornecedoras de painéis de instrumentos e pára-choques, reforçou os investimentos na produção desde 2006. “Criamos praticamente uma fábrica nova, gastando 16 milhões de reais na ampliação de galpão e na compra de 36 máquinas”, afirma Esther Faingold, superintendente da Mueller. Nos próximos três anos, segundo ela, mais 24 milhões serão investidos em novas máquinas e equipamentos de laboratório.

Se o desequilíbrio entre oferta e demanda se acentuar, um resultado esperado será a pressão sobre os custos e, portanto, sobre a inflação — questão que tem preocupado muitos economistas e algumas autoridades do governo. Ao interromper a série de cortes na taxa de juro básica da economia, mantida em 11,25% desde outubro, o Banco Central deixou claro que está de olho na escapada dos preços em diversos setores. Isso é bem claro na construção civil. Com a euforia do mercado imobiliário, impulsionado pela combinação de mais crédito e pela melhoria da renda dos consumidores, as construtoras já não conseguem encontrar equipamentos e matérias-primas com a abundância de antes. Nas maiores metrópoles, o aluguel de gruas requer meses de espera. A construtora mineira MRV, que abriu o capital na Bovespa em junho de 2007, deve dobrar de tamanho em 2008, com 2,2 bilhões de reais em lançamentos de novos empreendimentos imobiliários. Com essa meta, a empresa vem se planejando para não emperrar com a falta de equipamentos e de mão-de-obra. “Há dois anos era fácil contratar alguém ou comprar uma máquina na última hora. Agora, isso não existe mais”, diz Leonardo Correa, vice-presidente de relações com os investidores da MRV. Uma das saídas encontradas foi apelar para a importação de equipamentos. Se isso é possível no caso de máquinas, o mesmo não se verifica no caso de cimento, que precisa ser comprado de fornecedores próximos, já que seu transporte por longas distâncias é inviável. Embora as fabricantes de cimento ainda tenham folga de capacidade, o preço do produto aumentou cerca de 10% no ano e houve até casos de falta nas prateleiras de alguns varejistas. Por essas e outras, o BC tem razão em ficar de olho vivo nos preços e na atividade das linhas de produção. Não deixa de ser uma notícia alentadora que o país esteja vivendo as dores da expansão — mas é preciso atenção para que elas não se tornem uma barreira ao próprio crescimento.

Fonte:
Exame