Produção européia de açúcar em xeque
09/01/2009
Na paisagem cinzenta do outono, caminhões carregam beterraba sem parar entre 4 horas da manhã e 10 horas da noite para a usina de açúcar do grupo Cristal Union em Arcis-sur-Aube , na região de Champagne, a uma hora de Paris. É plena colheita na França, o maior país produtor de açúcar de beterraba do mundo. De meados de setembro até dezembro, o movimento é quase frenético no campo, nas estradas e sobretudo nas usinas que trabalham 24 horas por dia, sete dias por semana, na produção do açúcar mais subsidiado do planeta.
No total, a Europa comunitária cultiva, em média, 1,8 milhão de hectares de beterraba por ano. Em 2003, a produção rendeu 18,1 milhões de toneladas de açúcar, bem acima do consumo europeu, que alcançou 16 milhões de toneladas. Ter direito de plantar beterraba é fazer parte de um grupo de agricultores privilegiados – pelo menos até agora. Eles produzem também outras culturas, porque plantar só beterraba é inviável. Mas é ela que assegura uma renda quase duas vezes superior à média dos outros agricultores.
Na França, um produtor faz 80 toneladas de beterraba por hectare. O preço médio é de 34 euros por tonelada, a 16º de teor de açúcar. A receita média de um plantador chega a 2.600 euros por hectare graças aos subsídios. Já o custo de produção chega a 1.300.
Mas, olhando de longe as longas nuvens brancas formadas pelos vapores propagados pela usina, os irmãos Didier e Gerard Poirson, proprietários de 600 hectares de terras consideradas das mais produtivas da Europa, não escondem o temor sobre a sobrevivência de sua produção.
“No sistema atual ganhamos bem, mas com a reforma do regime do açúcar que vem por aí, a concorrência do Brasil e o aumento de exigências ambientais, nossa produção pode ser inviabilizada”, diz um desolado Gerard.
A fortaleza açucareira européia está ameaçada. É o fim da “bela vida”, como os próprios franceses chamam o regime que desde 1968 garante uma renda elevada aos agricultores europeus graças a três pilares: cotas de produção repartidas por país e por usina; preço garantido da beterraba e do açúcar três vezes superior ao preço internacional – 600 contra euros 200 -; e proteção tarifária que bloqueia a entrada de importações.
Foi esse regime açucareiro que fez da França uma grande potência açucareira e da Europa o segundo exportador mundial, com subsídios que derrubam os preços mundiais e afetam produtores mais competitivos como o Brasil.
A primeira brecha nesse sistema de proteção é o programa “Tudo menos Armas”, pelo qual a União Européia abre progressivamente seu mercado ao açúcar produzido pelos 50 países mais pobres. Em 2009, eles poderão exportar sem pagar tarifa na UE. Já surgem investimentos de outros produtores, como Ilhas Maurício e África do Sul, em países como Moçambique e Suazilândia, para poder exportar livremente ao mercado europeu.
O segundo golpe foi a vitória do Brasil na Organização Mundial de Comércio (OMC) contra a UE, colocando pressão adicional sobre o regime açucareiro europeu. A briga não terminou, porque a UE recorreu ao Órgão de Apelação da OMC. E o terceiro é a própria negociação da Rodada de Doha na OMC, que eliminará progressivamente todas as subvenções às exportações agrícolas.
Nesse cenário a Comissão Européia propôs, em julho passado, um novo regime açucareiro que levará seus produtores a aceitar uma queda de preço de 33%, corte de exportações e produção 5 milhões de toneladas menor.
Bruxelas constata que o atual esquema de repartição da produção não é mais possível, a começar por razões orçamentárias e legais. Hoje, 21 dos 25 países da UE produzem açúcar independentemente de sua competitividade, graças ao regime de cotas.
A saída será continuar uma dura reestruturação. Em 1990, existiam 240 refinarias de açúcar na UE. Em 2001, restavam 135. Para Jerome Bignon, diretor da Federação das Cooperativas de Beterraba, mais um terço delas vai desaparecer, sem contar a reestruturação na Polônia, com produção de 2,7 milhões de toneladas e aproximadamente 50 usinas em péssimo estado.
Para compensar o ajuste que a reforma vai impor, a partir de julho de 2005, a Comissão Européia ajudará os plantadores por perda de renda: para um francês, o apoio será de cerca de 500 euros por hectare de beterraba. Além disso, será paga uma indenização de 250 euros por tonelada para as usinas que abandonem a produção.
A Comissão Européia quer transferir, assim, as cotas entre usinas, de países menos competitivos como Itália, Espanha e Grécia, para os de melhor performance, como Franca e Alemanha, que já produzem 40% do açúcar de beterraba.
Para os franceses, está em jogo não só o setor agrícola, mas também o industrial. Com 12,5 toneladas de açúcar por hectare, a França é o maior produtor de açúcar de beterraba e também o melhor em rendimento. E quer preservar seu sistema de produção “fiel a cooperativa agrícola”. O país produz 4,7 milhões de toneladas de açúcar por ano, das quais 2,8 milhões para exportação – com os devidos subsídios. E 60% dessa produção é assegurada por cooperativas controladas pelos plantadores. No total, são 32 mil plantadores fornecendo beterraba a 30 usinas espalhadas pela Normandia, Pas-de-Calais, Picardie e Champagne-Ardenne.
“Investimos muito e não podemos aceitar que um novo regime inviabilize nossa produção”, diz Daniel Collard, presidente da Federação das Cooperativas de Beterraba (FCB). “A Europa tem que fazer uma escolha política: se vamos continuar produzindo na Europa ou se vamos investir todos no Brasil”, afirma Alain Comissaire, diretor-geral do grupo Cristal Union.
Ainda na expectativa dos detalhes da reforma do regime do açúcar, os franceses, em todo caso, começam a se preparar para o fim da “idade de ouro” da beterraba, na expressão de um jornal parisiense. Collard, da FCB, diz que os agricultores estão prontos para aceitar uma baixa de preço da beterraba e do açúcar, desde que possam produzir o mesmo volume atual (4,7 milhões de toneladas), e “reposicionar” uma parte das exportações no mercado comum europeu.
Para Collard, mesmo com a reforma a França poderá continuar exportando açúcar refinado para o Mediterrâneo. “O preço da exportação depende também das flutuações monetárias, custo de transporte etc”, argumenta.
Mas os irmãos Poirson tem dúvidas. Eles confirmam o argumento brasileiro na OMC de que os europeus só têm conseguido exportar graças a subsídios cruzados. Ou seja, os subsídios dados ao açúcar produzido pelas cotas A (para mercado interno, com garantia de preços mínimos) e B (que podem ser exportados, com direito a subsídios) ajudam a exportação do açúcar da “Cota C” (deve ser exportada “sem direito a subsídios”).
Com faturamento superior a 1 milhão de euros por ano, os dois agricultores preparam cortes de custos. Permanecerão três empregados para trabalhar com eles nos 600 hectares. Cedric, o maquinista, ganha 1.200 euros por mês e, por enquanto, tem emprego garantido.
“Não podemos lutar contra o Brasil. E quem tiver menos de 80 hectares pode ficar fora do negócio do açúcar, porque será necessário aumentar o terreno”, afirma Gerard. Seu irmão Didier faz as contas e constata que já ganha mais dinheiro com batata. Mas pára, pensa e pergunta: “Qual a produção de batata no Brasil?”.
Valor Online
11/11/2004