O Brasil descobre a Bolsa
09/01/2009
As empresas nunca levantaram tanto dinheiro. Os pequenos investidores nunca vieram em tão grande número. As ações nunca valeram tanto. O mercado de capitais brasileiro funciona bem pela primeira vez na história
EXAME Ao longo dos últimos meses, enquanto o noticiário político praticamente monopoliza a atenção nacional, o Brasil vem conseguindo operar um daqueles avanços que marcam a história da economia de um país. Sem que a maioria das pessoas tivesse se dado conta, um dos principais obstáculos ao crescimento da economia brasileira — a falta de dinheiro para financiar a expansão das empresas — finalmente começou a ser removido. Até recentemente dependente do caríssimo crédito bancário para financiar projetos de investimento, um número crescente de companhias brasileiras tem conseguido captar recursos no mercado financeiro a um custo baixo para os padrões locais.
O epicentro dessa revolução ocorre na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), incrustada num suntuoso prédio no centro histórico da capital paulista. Por muito tempo vista como um cassino onde espertalhões faziam fortuna à custa do suado dinheiro de pequenos poupadores, a Bovespa começa agora a desempenhar um papel totalmente inovador na economia do país — o de aproximar empreendedores com idéias inovadoras e planos de expansão das pessoas com dinheiro para financiar esses projetos.
É essa capacidade de juntar empresários e investidores que torna a bolsa de valores uma das engrenagens mais poderosas da máquina capitalista em todas as nações desenvolvidas. “Comparo o momento atual do mercado brasileiro com o de um jovem que completa 18 anos de idade”, diz Marcello Trindade, presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). “Atingimos, finalmente, a maturidade.”
Na prática, essa maturidade se traduz num ritmo frenético de negócios envolvendo bancos, corretoras, empresas e investidores. Nunca correu tanto dinheiro pela bolsa brasileira. A média diária de negócios quase dobrou nos últimos anos e hoje supera 1 bilhão de dólares, recorde histórico. O valor das empresas listadas na bolsa cresceu 76% desde 2004. O volume de contratos futuros de ações na Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F) triplicou em três anos e também atingiu um patamar recorde. A lista de empresas motivadas a sair em busca de investidores cresce a cada dia.
São estimados 30 lançamentos iniciais de ações (os chamados IPOs — sigla em inglês de Initial Public Offerings) em 2006, ante apenas dois entre 2001 e 2003. A pujança da bolsa pode ser vista também no número de brasileiros com dinheiro aplicado. Nunca tanta gente investiu em ações — as pessoas físicas já respondem por 25% dos negócios. Esses números provam que a bolsa começou a funcionar — e bem. “Ela se tornou um instrumento eficaz de financiamento para as empresas, algo inédito na história do país”, diz o economista José Roberto Mendonça de Barros. Desde que a Natura, empresa fabricante de cosméticos, reabriu o mercado com sua oferta pública, há quase dois anos, os lançamentos de ações movimentaram 15,5 bilhões de reais, o equivalente a 11% do crédito corporativo no Brasil, maior percentual dos últimos 12 anos.
Apesar de todo esse crescimento recente, o espaço para novos avanços da bolsa é enorme. Segundo estudo da consultoria McKinsey, ao qual EXAME teve acesso com exclusividade, o mercado financeiro deve passar por uma brutal transformação daqui para a frente. O estudo analisou dados a partir de 1993 e constatou que, até 2004, o mercado servia quase que exclusivamente o governo. “Ele captava dinheiro para financiar o apetite desmesurado do Estado”, diz Eduardo de Andrade Filho, sócio da McKinsey. É isso que tende a mudar daqui em diante. Já há consenso entre os especialistas de que o gigantismo da máquina estatal se tornou incompatível com o tamanho da economia nacional. Portanto, na pior das hipóteses, o governo deve parar de crescer — idealmente, começaria a diminuir. Isso deve provocar uma mudança crucial no destino da poupança nacional. “O dinheiro que antes financiava o governo começa a ser alocado para as empresas”, diz Andrade. É o que comprovam estatísticas recém-divulgadas. Em 2004, último momento do estudo da McKinsey, o valor das ações brasileiras representava 55% do produto interno bruto (PIB). Em 2006, esse percentual havia subido para 63%. Segundo Andrade, o Brasil pode chegar ao nível chileno em cinco ou dez anos — lá as ações valem 120% do PIB.
O avanço da bolsa pode suprir uma lacuna que já perdura há mais de duas décadas. Até os anos 70, muitas empresas brasileiras se valiam do crédito subsidiado do governo para tocar seus investimentos. Segundo o ideário estatizante então em voga, os capitalistas podiam — e deviam — buscar guarida nos cofres governamentais. Embora equivocado, esse modelo foi capaz de impulsionar o crescimento de centenas de grupos nacionais. A partir dos anos 80, no entanto, a crise financeira do Estado brasileiro fez ruir essa modalidade de financiamento. Com a porta dos bancos estatais fechada, restava às empresas buscar dinheiro na banca privada — mas nesse caso os negócios esbarram nas elevadíssimas taxas de juro cobradas nos empréstimos. As companhias mais encorpadas conseguiram captar recursos no exterior, outro caminho que se mostrou problemático face às contínuas mudanças na política cambial.
Como o país está conseguindo mudar esse cenário? “Tudo foi resultado de um processo de mudanças construído aos poucos, com a colocação de um tijolo por vez”, diz Raymundo Magliano Filho, presidente da Bovespa. Os alicerces começaram a ser lançados há pouco mais de cinco anos, com a criação do “Novo Mercado”. Criado em 2000, esse segmento diferenciado da Bovespa removeu um entrave histórico: a baixa qualidade das ações como produto financeiro.
Antes do Novo Mercado, a maioria das ações negociadas na bolsa eram preferenciais, que embutem dois problemas graves. Primeiro: quem as possui não pode participar das decisões estratégicas da empresa. Segundo: elas não garantem ao investidor um dos principais atrativos da bolsa, que é a possibilidade de lucrar com a venda do controle do negócio. Era esse o entrave. Por isso, a bolsa não deslanchava. “Estávamos num círculo vicioso: o investidor só aceitava comprar ações muito baratas e o empresário se recusava a vender seu negócio barato”, diz Gilberto Mifano, superintendente-geral da Bovespa e um dos principais incentivadores do Novo Mercado.
O Novo Mercado solucionou esses problemas. A empresa que pretende ter suas ações negociadas nele é obrigada a garantir direitos iguais a todos os acionistas. Além disso, é preciso publicar balanços no padrão americano e manter profissionais à disposição dos investidores. Tudo isso custa dinheiro — essas despesas podem consumir 0,5% do faturamento anual –, mas as empresas acreditam que o resultado é compensador. “Sem o Novo Mercado, não teríamos conseguido atrair 9 000 acionistas minoritários e criar a primeira corporação brasileira”, diz José Galló, presidente da gaúcha Lojas Renner, uma das maiores cadeias de varejo do país, que pulverizou seu capital em bolsa no ano passado.
A enorme transparência que é exigida de quem faz parte do Novo Mercado costuma ser premiada pelo investidor. Um estudo inédito de Rodrigo Bresser Pereira, sócio da Bresser Asset Management, aponta que, em média, as ações das empresas listadas no Novo Mercado tiveram valorização de 8,5% apenas no primeiro dia de negociação. Ganhar isso com títulos públicos leva mais de seis meses. O estudo também revela que os retornos permaneceram altos no médio prazo. Nos primeiros seis meses, essas ações subiram 44%. “Há indícios de que as ações de empresas que respeitam seus acionistas têm desempenho superior”, diz Bresser.
A conjunção de vantagens para o investidor e para as empresas vitaminou o Novo Mercado. De 2004 para cá, todos os IPOs ocorreram nele ou num segmento um pouco menos estrito, o Nível 2 de Governança Corporativa. O Nível 2 admite ações preferenciais, mas exige conselheiros independentes e, principalmente, garante às preferenciais um mínimo de 80% do prêmio pago pelo controle da empresa.
O movimento de renascimento da bolsa brasileira é simultâneo à enorme liquidez internacional. Investidores estrangeiros à procura de bons negócios continuam chegando — e contribuindo significativamente para a alta do mercado. “A estrutu ra legal do mercado brasileiro é melhor do que a da Rússia, da Índia e da China, seus principais concorrentes por investimentos”, diz Peter Wuffli, presidente do banco UBS, um dos líderes em lançamentos de ações no Brasil. “Isso facilita muito para os estrangeiros tomar a decisão de investir em empresas brasileiras.”
Outro fator que está impulsionando os negócios na Bovespa é o reaparelhamento do órgão responsável pela fiscalização do mercado, a CVM. Criada em 1976, sua atuação foi alvo de críticas constantes ao longo das últimas décadas. Com poucos recursos materiais e humanos, sem respaldo legal e envolvida em disputas com o Banco Central, a CVM era incapaz de cumprir seu papel de xerife do mercado até recentemente. “Agora estamos capacitados para atuar como o investidor exige”, diz Marcello Trindade, o advogado que a preside. Desde 2001, ela tem, por lei, poderes para atuar sobre tudo o que se relaciona a investimentos — de ações a fundos, passando pelas aberturas de capital e divulgações de resultados financeiros das empresas abertas. Mais do que isso, seu quadro de pessoal aumentou de 400 para 550 pessoas, e ela recebeu verbas suficientes para treinar e aparelhar seus funcionários. Exemplos recentes da nova mão forte da CVM foram os lançamentos de ações da empresa de açúcar Cosan e da construtora Company. Ambos foram adiados por alguns dias devido a declarações prestadas por seus executivos a órgãos de imprensa. Exagero? “A lei é clara, o empresário não pode dizer nada enquanto durar o período de si lêncio”, diz Trindade. “Todo mundo será mais cuidadoso com o que diz e quem ganha é o investidor.”
Essa mudança de comportamento representa uma guinada radical em relação ao período entre 1966 e 1971, quando a bolsa também experimentou dias de euforia. Na época, Brasília permitiu que as pessoas físicas usassem parte do imposto de renda para comprar ações e obrigou os fundos de pensão estatais a investir fortunas na bolsa. Isso estimulou dezenas de empresas a abrir capital, embora estivessem, em sua maioria, totalmente despreparadas para ir a mercado. “Algumas só queriam as vantagens oferecidas pelo governo”, diz Claudio Monteiro, professor de finanças da Fundação Getulio Vargas de São Paulo. Conclusão: após meses de corrida especulativa, a bolsa desabou. “Muitas daquelas empresas fecharam seu capital nos anos 90”, diz Alexandre Bettamio, chefe do banco de investimentos do suíço UBS. “Hoje, quem decide captar dinheiro é muito mais consciente.”
Tantas melhorias seduziram o investidor brasileiro. Hoje, as pessoas físicas respondem por um quarto dos negócios com ações. Eram menos de 10% há dez anos. “Há indícios de que o pequeno investidor está mais maduro”, diz Mifano. Essa serenidade faz com que a maioria dos especialistas descarte a hipótese de enxergar nas recentes altas da bolsa uma bolha especulativa. É claro que há sempre o risco de negócios ruins prosperarem nos períodos de euforia, como o que se vê hoje. Portanto, ninguém está livre de perder dinheiro na bolsa. “Ações sempre serão um investimento de risco”, diz o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros. Apesar disso, a maioria dos especialistas permanece otimista.
Pode parecer, aos olhares leigos, que o sucesso dos mercados financeiros interessa apenas a investidores, empresas e banqueiros que trabalham para elas. Equívoco. Os benefícios de uma bolsa eficiente espalham-se por toda a economia. No início do século passado, os escritos do economista austríaco Joseph Schumpeter já mostravam que um sistema financeiro bem desenvolvido representa um estímulo vital para o crescimento econômico. “Acredito que isso será cada vez mais verdadeiro”, diz o economista Robert Shiller, da Universidade Yale, uma das maiores autoridades mundiais no tema. “Os mercados financeiros se desenvolveram muito nas últimas décadas. Quem não entender sua importância vai ficar para trás.” Um estudo de Ross Levine, outro economista americano, da Universidade Brown, mostra que, quanto mais ativo for o mercado acionário, maiores serão os incentivos para que os investidores apliquem em projetos de longo prazo, como os de infra-estrutura. “Trata-se de um motor vital para o crescimento econômico”, diz Shiller.
A própria história é uma evidência da importância do mundo financeiro para o desenvolvimento econômico. Os primeiros mercados acionários surgiram na Holanda e na Inglaterra no século 17 — nações líderes do mundo de então. Mas foi nos Estados Unidos, a partir do século 19, que a bolsa ganhou contornos modernos e impulsionou a máquina capitalista americana aos patamares atuais. A força dos mercados financeiros cresceu ainda mais nas últimas décadas, com a expansão dos fundos de pensão. “O vigor da economia americana deriva da pujança do seu mercado de capitais”, diz o consultor Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central. “Além de reduzir o custo de capital e aumentar a transparência das empresas, o mercado permite que pessoas comuns se tornem sócias das empresas e o lucro seja disseminado pela sociedade.” É isso — espera-se — que começa a ocorrer também por aqui.
Fonte:
Portal Exame
Com reportagem de Suzana Naiditch