70% dos IPOs dos últimos anos se desvalorizaram
03/08/2008
Depois da euforia inicial, boa parte das aberturas de capital realizadas nos últimos anos se mostrou um investimento ruim — quase 70% das empresas que chegaram à bolsa valem hoje menos do que no dia do IPO
EXAME De queixo caído, o mercado financeiro brasileiro assistiu em junho à maior abertura de capital de sua história. A petrolífera OGX, do empresário carioca Eike Batista, levantou 4 bilhões de dólares na Bolsa de Valores de São Paulo — número que explica a largura dos sorrisos de Eike e sua equipe na foto que ilustra a página ao lado. As ações da empresa fecharam aquele dia eufórico com alta de 8,3%, o que deu à OGX o incrível valor de mercado de 23,6 bilhões de dólares. O feito transformou o empresário em destaque na imprensa brasileira e mundial. Afinal, Eike criara do nada uma companhia com quase 7% do valor da Petrobras — do nada mesmo, pois a OGX ainda não havia produzido um só barril de petróleo, enquanto a estatal brasileira entrega mais de 2 milhões de barris por dia. Passado aquele dia de júbilo, porém, o cenário começou a mudar. Para pior, muito pior. Pouco mais de um mês depois da abertura de capital, as ações da OGX já caíram mais de 50%. Numa conta matemática simplória, a companhia perdeu quase 1 bilhão de reais de valor por dia útil. Para quem comprou ações da OGX naquele 13 de junho eufórico e achou que o suposto toque de midas de Eike multiplicaria seu dinheiro rapidamente, a empresa vem se transformando — pelo menos até aqui — num problema.
Antes fosse o único. O roteiro seguido pela OGX nas últimas semanas tem sido repetido com angustiante freqüência na bolsa brasileira. Grandes operações anunciadas como transformadoras, ícones de uma nova fase do mercado de capitais nacional, logo se mostram investimentos ruins. Bovespa e BM&F são exemplos de aberturas de capital enormes, que tiveram valorização superior a 20% no primeiro dia de negociação e despencaram nas semanas seguintes. Esses são apenas os casos mais notórios. Há dezenas de outros. Um estudo inédito do banco de investimento Citibank mostra que a onda de aberturas de capital (ou IPOs, na sigla em inglês) foi, até agora, um mico do ponto de vista do investidor. Desde 2004, 115 companhias brasileiras foram à bolsa e, com isso, arrecadaram mais de 120 bilhões de reais. Os resultados, para quem investiu nessas empresas e viu nelas uma aposta de médio prazo, foram desastrosos. Cerca de 70% das empresas que abriram o capital nos últimos quatro anos valem hoje menos do que no dia do IPO. Dezesseis delas tiveram desvalorização maior que 50%. E aproximadamente 94% apresentam desempenho pior que o Ibovespa — ou seja, mesmo que as ações tenham se valorizado, perderam para o mais conservador índice da bolsa paulista. “Houve um exagero na forma com que as emissões foram conduzidas e nas expectativas de retorno”, diz Gustavo Franco, expresidente do Banco Central e sócio da Rio Bravo Investimentos.
Por que isso aconteceu? As razões são diversas. A principal delas pode ser resumida numa máxima que é repetida como mantra por banqueiros de investimento especializados em aberturas de capital: “If the ducks are quacking, feed them” (“Se os patos grasnam, alimente-os”). Os patos, nesse caso, são os investidores internacionais. Nos últimos anos, a liquidez global causada por taxas de juro historicamente baixas motivou uma desenfreada busca por ativos em países emergentes. A bolsa brasileira oferecia apenas os suspeitos de sempre: Vale, Petrobras, os grandes bancos, as siderúrgicas, as empresas de telecomunicações. Era pouco. Com a perspectiva de obtenção do grau de investimento, o apetite estrangeiro por novas oportunidades com alto potencial de retorno foi potencializado. O volume diário negociado por estrangeiros na bolsa paulista era de apenas 49 milhões de reais em 2003. Passou para 410 milhões no ano passado. Os patos, famintos, grasnavam.
Os bancos, então, começaram a fazer o que sabem — levar empresas à bolsa para alimentar essa demanda. Numa operação de abertura de capital, os bancos de investimento que levam as empresas à bolsa ganham cerca de 4% do valor total da oferta em comissões. Seu interesse, portanto, estava totalmente alinhado ao de empresários que pretendiam aproveitar o momento para levantar a maior quantidade de dinheiro possível, seja para a companhia, seja para o próprio bolso. Se as primeiras empresas a se aventurar eram consideradas ideais para a bolsa (como Cyrela, Localiza e Renner), o nível médio das candidatas ao IPO foi caindo sensivelmente, na opinião dos analistas ouvidos por EXAME. Mais de 20 construtoras abriram o capital após a bem-sucedida estréia da líder Cyrela, em 2005. Nos Estados Unidos, existem apenas dez incorporadoras de capital aberto; no México, seis. “Quando os bancos perceberam que os investidores comprariam incorporadoras ou construtoras duvidosas desde que fosse dado um desconto em relação ao preço da Cyrela, começou a loucura”, diz um executivo que assessorou dezenas de IPOs. “A gente percebeu que poderia vender qualquer coisa.” Ocorreu um fenômeno semelhante com os bancos médios. Doze deles abriram o capital, quase sempre a preços hoje considerados exorbitantes. As ações do banco Indusval somavam o equivalente a quase quatro vezes o valor patrimonial da instituição no dia da estréia na bolsa, em 2007. Na época, o mercado não pagava pelas ações da Nossa Caixa nem mesmo duas vezes o seu patrimônio. Algumas construtoras valiam na bolsa o equivalente a seus lucros multiplicados por 100.
A coisa, portanto, tinha focinho de bolha, pé de bolha, cara de bolha e jeitão de bolha — e, surpresa, era uma bolha mesmo. “Os altos preços foram injustificáveis, a tendência era que fossem ajustados para baixo”, diz Philip Reade, gestor do fundo americano Marathon no Brasil. “Quem achou que o mercado continuaria pagando tão alto por empresas tão duvidosas perdeu muito dinheiro.” Hoje, 16 das 25 companhias do setor imobiliário que abriram o capital valem menos que no dia do IPO. O mesmo aconteceu com todos os bancos médios. Ironicamente, o gatilho para esse ajuste foi a crise no mercado internacional, que reduziu o apetite dos investidores estrangeiros por risco — e, portanto, por papéis de empresas com menor liquidez. Em momentos de volatilidade, os grandes investidores que ficam no Brasil optam por se refugiar em ações com maior volume de negociação, já que é mais fácil se desfazer de suas posições nas horas de estresse. Até mesmo empresas consideradas bem-sucedidas, como Gol e Natura, receberam uma sonora punição do mercado. As ações da Gol caíram quase 70% nos últimos 12 meses. E as da Natura, quase 26%. Segundo o levantamento do Citi, a companhia aérea vale hoje pouco mais da metade do que valia em 2004, quando fez seu IPO. “Houve uma fuga para ações menos arriscadas, como Petrobras e Vale”, diz Celso Boin Júnior, chefe de análise da Link Corretora. O fenômeno se repetiu em outros países emergentes. Segundo dados da consultoria Dealogic, 81% dos IPOs realizados na China em 2007 valem hoje menos do que no dia de estréia. Na Índia, o número ultrapassa 70%.
Embora a razão de fundo — tanto da euforia como da depressão atual — seja o humor dos mercados internacionais, alguns fatores ajudaram a dar à onda de IPOs brasileiros um caráter peculiar. Uma delas foi o hábito, por parte dos bancos, de conceder vultosos empréstimos a empresas que não tinham condições de passar no teste da bolsa sozinhas. A prática foi liderada pelo UBS Pactual e pelo Credit Suisse, que dominam as operações de IPO no Brasil. Com o dinheiro, as empresas poderiam fazer investimentos e ganhar musculatura. No ano passado, quase um décimo das companhias que abriram o capital tinha recebido um cheque de seus assessores para acelerar o IPO. O caso mais famoso — e catastrófico — é o da Agrenco, empresa do agronegócio que, entre outras atividades, comercializa soja. O Credit Suisse liderou um empréstimo sindicalizado de 150 milhões de dólares para que a companhia construísse três usinas de processamento de soja e de biodiesel. Em troca, o banco ganhou, além da comissão habitual do IPO, um bônus de 11 milhões de dólares e 6,9% das ações da empresa. Após levantar 666 milhões de reais, a Agrenco teve de pagar em troca ao banco o equivalente a 400 milhões de reais. Como sobrou pouco dinheiro, a companhia — que já não era lá essas coisas — acabou agonizando por inanição. Seu caixa secou apenas oito meses após o IPO, e os resultados vieram muito abaixo do prometido.
Para piorar, três de seus acionistas foram presos recentemente, acusados de sonegação fiscal. Meses antes do escândalo, o Credit Suisse já havia alertado a companhia sobre a difícil situação financeira em que ela se encontrava. Entre maio e junho deste ano, o banco vendeu parte de suas ações na Agrenco, ficando com 5%. No mesmo período, circulava no mercado um relatório da instituição recomendando a compra dos papéis. “Se o banco tinha conhecimento da crítica situação da empresa, a recomendação de compra da ação é no mínimo estranha”, diz o sócio de uma asset management. Procurado, o Credit Suisse preferiu não se manifestar. Atualmente, os conselheiros da Agrenco buscam investidores para injetar dinheiro na companhia e tentar reverter a queda de quase 86% de suas ações na bolsa (veja reportagem na pág. 86). Outras empresas que aceleraram a ida à bolsa com empréstimos de seus bancos coordenadores têm tido um desempenho desolador do ponto de vista de seus investidores. O frigorífico Minerva, o banco Cruzeiro do Sul e a construtora Inpar valem hoje menos da metade de seu preço de estréia. Para os bancos, a estratégia foi extremamente rentável. No ano passado, as receitas pagas por empresas que emitiam ações chegaram a 2 bilhões de reais, recorde histórico. Para os investidores, foi um desastre.
Seria um erro, no entanto, restringir o universo de problemas causados pela falta de preparo aos empréstimos pré-IPO. Entre as novatas de pior desempenho estão companhias que prometeram aos investidores algo que não podiam, não queriam ou não conseguiriam cumprir. “Um dos piores pecados que uma empresa de capital aberto pode cometer é prometer e não entregar”, diz Clodoir Vieira, economista-chefe da corretora Souza Barros. Além da Agrenco, a Laep Investiments, controladora da Parmalat, é um dos mais negativos exemplos das conseqüências que isso pode trazer. No prospecto da oferta de ações, a Laep anunciou seus planos de destinar 60% dos 477 milhões de reais captados na bolsa às atividades da Intregalat — empresa criada quatro meses antes do IPO para integrar a produção de leite por meio de parcerias com produtores. No entanto, apenas 16% do total captado foi destinado à nova empresa. O resto foi usado em aquisições e capital de giro (veja reportagem na pág. 60). As ações da companhia valem hoje 70% menos que no dia da estréia na bolsa, em outubro de 2007. A CSU CardSystem, empresa de administração de pagamentos eletrônicos, também sofre por ter frustrado o mercado com projetos não concretizados. O principal motivo, segundo analistas, foi a suspensão de um acordo com a Caixa Econômica Federal, pelo qual a empresa administraria os cartões do banco federal. A Caixa não cumpriu os prazos, e as companhias brigam na Justiça. Os investidores, porém, não esperaram por uma resolução do caso. As ações da CSU valem cerca de 75% menos que no dia do IPO.
Fonte:
Exame
Daniella Camargos