PITTORESCA – Que tal trabalhar em um vilarejo italiano?

31/03/2021

“A Itália sob Tensão – Diário de uma Transição” poderia ser o título de um filme dramático ou de um romance histórico. Mas não: é o nome um projeto estatístico que visa fazer um exame de consciência ao analisar os pontos fracos que a Itália traz de seu passado nos quesitos escola, consumo familiar, sistema universitário e turismo, os quais se abalaram com a pandemia da covid-19 ao evidenciarem o despreparo do país nestes aspectos. Com essa reflexão, feita pelo Censis, espera-se preparar a Itália para um futuro mais seguro e construtivo.

“Depois da Tempestade”, como indica parte do subtítulo da pesquisa do Censis dedicada ao turismo (“Reinventare il turismo dopo la tempesta perfetta”), a “necessidade na reprojeção de pensamentos” deve ser uma realidade. Deve, não: já é! Flexibilidade no trabalho, maior tempo livre para as questões pessoais, um cotidiano menos agitado e caótico, maior conexão com a natureza e com as tradições e incentivo à sustentabilidade são alguns dos pontos que ganharam evidência sociocultural nos últimos anos, mas que com a pandemia em 2020, tiveram seus valores acentuados pela fragilidade de um sistema doente em diversos pontos.

Na Itália, dentre as propostas para conciliar as exigências de trabalho com uma rotina mais leve ao beneficiar não apenas o trabalhador e o empregador, mas toda uma comunidade, existem duas bem interessantes: a HQVillage e a Borgo Office.

Com propostas exclusivas no país, ambas visam movimentar economicamente pequenas cidades e burgos (vilarejos) italianos que sofrem com o despovoamento ou que viram os aportes do ramo turístico despencarem no último ano, tendo como ponto de partida o smart working (caso não esteja familiarizado com o termo, smart working é um modelo de trabalho que confere maior flexibilidade e autonomia ao trabalhador, que executa suas atividades fora do escritório. O home office, que ganhou adesão obrigatória durante a pandemia, é um dos tipos de trabalho deste modelo, já cunhado por especialistas como o “modo de trabalho do futuro”).

Em se tratando do futuro do trabalho, a HQVillage faz questão de anunciar a sua antecipação como modelo de negócio: “Antecipamos o futuro das sedes empresariais: sustentáveis, resilientes e adaptadas às novas necessidades do smart worker [ou seja, do trabalhador do futuro]”.

Se você é empregado ou empregador de qualquer parte do mundo, a proposta da HQVillage pode fazer seus olhos brilharem: ao ser transferido para uma das localidades parceiras da empresa (ainda que por tempo determinado), o trabalhador ou colaborador poderá escolher onde e como viver o próprio tempo. E cá entre nós: ter como sede de trabalho um dos belíssimos burgos medievais italianos não é má ideia, não é mesmo? Da parte do empregador, esse ganha ao investir no bem-estar de seu funcionário, em reduzir os investimentos com uma sede fixa e ainda colabora no impacto socioambiental de uma região necessitada.

As vantagens também se estendem aos proprietários de imóveis, que podem receber uma remodelação imobiliária, ter novas oportunidades de receitas a partir das empresas, receber receitas seguras, além de estarem contribuindo para a valorização do território. Já para as cidades e burgos, estão garantidas a manutenção de sua unicidade ao torná-las atrativas não apenas para o turismo, como também na estimulação do repovoamento local, da geração de riquezas e de novas oportunidades de trabalho.

“HQVillage é um projeto que desenha, em conjunto com todos os seus stakeholders (empresas, trabalhadores remotos, burgos, proprietários, parceiros, investidores), o futuro. Tudo vem do imenso amor que temos pelo nosso país e pelo nosso território. Claro que este ambicioso projeto agora é dedicado à Itália, nosso país, mas já temos a intenção de expandi-lo para o mundo, sem fronteiras. Imaginamos um futuro sem barreiras, no qual as pessoas, passando de uma HQVillage a outra, possam ser livres para trabalhar, viver, conhecer, descobrir, sem limites de espaço e tempo”, disse à PITTORESCA Federico Pistone, um dos fundadores do projeto.

Entretanto, se você é um nômade digital, em que bastam um computador e uma conexão wi-fi para poder trabalhar, independente do lugar em que esteja, os serviços da Borgo Office são a opção para se levar em conta ao trabalhar em modo remoto da Itália.

A recém-criada plataforma italiana é a primeira do país a unir a necessidade de trabalhar remotamente com ofertas de hospedagem no campo e já tem recebido muitas propostas de interessados. “Antes mesmo da pandemia, a ideia de fugir da cidade para um ambiente mais tranquilo já provocava muitos descontentamentos nas metrópoles. Atualmente, essa tendência se acentuou muito [aumento de 66% segundo pesquisa do Airbnb em outubro de 2020]. Neste novo cenário, o apelo aos burgos tornou-se mais forte do que nunca: a combinação “smart working & fine living” fez com que voltassem à moda, principalmente os italianos, famosos no mundo pela sua beleza”, justifica a Burgo Office.

Mas não é só a beleza dos burgos italianos que tem atraído interessados em hospedagens para trabalhos remotos. A plataforma tem uma proposta que é um trunfo para os nômades digitais, sejam eles italianos ou estrangeiros: a possibilidade de se hospedar gratuitamente em alguma das localidades agrícolas de burgos parceiros espalhados por toda a Itália!

Funciona assim: o nômade digital que tem uma grande necessidade de trabalhar em um lugar imerso à natureza, escolhe o burgo e a localidade agrícola na qual quer se hospedar e indica o período da hospedagem, que varia entre um dia a uma semana. A Burgo Office analisa a solicitação e confirma o pedido. Feito isto, basta aproveitar a hospitalidade regional do burgo.

Em contrapartida, o nômade digital, caso queira, poderá retribuir à hospedagem comprando uma cesta de produtos da localidade ou adquirindo ingressos para experiências exclusivas do burgo, como um passeio em meio à floresta, a contemplação do pôr do sol em um vinhedo ou um curso de culinária de pratos locais.

A hospedagem totalmente gratuita, sem que haja a obrigação de pagar pelo serviço, é uma força binária. Ao ser bem recebido, o hóspede sente-se incumbido a retribuir pelo serviço, podendo assim, deixar uma soma entre 100 a 400 euros na aquisição de produtos. Tal retribuição espontânea faz parte, inclusive, de um estudo da Universidade da Pensilvânia (Theory of Pleasurable Surprise) e já demonstrou eficiência em outros negócios, conforme apontou a Vanity Fair em matéria sobre a Borgo Office.

Para a PITTORESCA, a empresa declarou que após o fim da pandemia, os estrangeiros serão uma grande parte do público da Borgo Office: “Trabalhar em smart working em um burgo italiano é uma experiência única para aqueles que conhecem pouco a Itália”.

Em meio a tantas mudanças, o que ainda não mudou é a vontade em se hospedar na Toscana, a região italiana mais desejada pelos turistas e a número um nas solicitações recebidas pela Borgo Office, que mantém uma citação do arquiteto e urbanista Stefano Bori como um dos pilares do negócio: “Via dalle città: nei vecchi borghi c’è il nostro futuro” (“Fora da cidade: é nos velhos burgos que está o nosso futuro”).

BRUNA GALVÃO é jornalista especializada em Itália / bruna.galvao@agenciacerne.com.br